O escritor Gorki foi condenado à morte por não enaltecer a U.R.S.S.

José Fernando Nandé


São terríveis certas palavras e expressões. Alma e Espírito, por exemplo. Dizem muito, entretanto sem se explicarem. Por desgraça, estes espectros da realidade habitam outros mundos, etéreos por certo, dos quais só temos vagas e imprecisas notícias. Em literatura, essas duas palavras teimam em existir, mesmo que o autor nunca delas faça uso. Em Alexei Pechkov, nosso “amargo” Gorki (foto), encontramos vários espíritos que habitam sua obra. Na maior parte, espíritos de revolta contra a condição humana, porém de profundo respeito ao que nos faz humanos.
No Brasil, temos dois notáveis textos sobre este escritor russo, um de Carpeaux e outro de Cony, que buscam desvendar o espírito — ou espíritos — de Gorki que, aliás, ele mesmo esboçara em “As minhas universidades” por meio da fala da personagem Nicolau, um químico com ares de filósofo.

O espírito de Gorki fundamenta-se na liberdade: “Não esqueças o que já sentes dentro de ti: a liberdade de pensamento é a única, e bem preciosa, liberdade acessível ao homem. E só a possui aquele que, nada aceitando por dogma, explora tudo, aquele que compreendeu bem a continuidade da evolução, o seu movimento infatigável, a perpétua mutação dos fenômenos ”, ensinou-lhe Nicolau.

Leon Tolstoy e Gorki
Otto Maria Carpeaux ocupou-se em situar Alexei Pechkov na linha do tempo. Para Carpeaux, ele simplesmente descobre um mundo novo na literatura russa. Gorki nascera pobre e ficara órfão aos nove anos. Em decorrência, foi aprendiz de sapateiro, pintor de ícones, faxineiro, cozinheiro de navio e padeiro, enquanto aprendia as letras por conta e tornava-se escritor. Tudo isso intercalado por andanças intermináveis pela Rússia czarista. Mas tendo uma vida assim, digamos, para lá de miserável e incerta, o que Gorki descobriu? Ele descobriu um povo não menos miserável do que ele e que poderia habitar como protagonista as páginas de seus livros. Ele descobriu a alma do povo que aparecera até então nas obras literárias como apêndice de dramas, geralmente pessoais, de uma nobreza moribunda e de uma burguesia emergente e entediada. Carpeaux observa que nos escritos de Gorki não há lugar para os aristocratas e latifundiários,  muitas vezes com sentimentos de culpa, como em Tolstoi e nas peças de Tchekov. Não há espaço também para burocratas, tiranos e corruptos como em Gogol; ou ainda para os camponeses (“muchicks”) idealizados, quando não santificados, pelos escritores russos. A obra de Gorki trata fundamentalmente dos vagabundos e desempregados, desajustados que vagavam pelas cidades e estepes da Rússia. Mas o genial é que Gorki traz à luz não somente este “lumpemproletariat” que buscava na vagabundagem uma opção de vida, talvez a única naquela Rússia pré-industrial. Ele traz também um tipo diferente que não costumava freqüentar as salas de tipografia em que os livros eram compostos. A genialidade de Gorki está em mesclar os personagens do lumpemzinato aos desertores da vida — pelo menos da vida como pensamos que é, com regras, códigos, licenças para respirar e cuspir.

Em o “Vagabundo Original”, somos apresentados ao Dr. A. P. Ruminski, médico que morreu entre os mendigos. Um homem que, sem ficar demente, simplesmente resolveu viver os últimos anos de sua vida segundo sua própria filosofia. Ruminski agrada a Gorki porque, no fundo, ambos compartilham praticamente do mesmo pensamento. Para o médico, a felicidade está em o homem ter-se inventado bem a si mesmo e amar a sua invenção. “Amar-se a si próprio pode fazê-lo um porco, um cão, qualquer animal. Faz-se por instinto! O homem, contudo, apenas deve amar aquilo que ele mesmo criou para si.” E Gorki pergunta-lhe: “E o senhor o que ama?”.
“O meu amanhã (...) Tenho a ventura de não conhecer o que ele será”, respondeu-lhe o doutor, que se guiava por uma moral fatalista. “Eu sou um condenado à morte, tenho o direito de viver ao meu modo. Não preciso para nada das leis humanas, visto que igualmente para mim a lei natural da geral destruição é obrigatória.”

Gorki e Stalin
Por outro lado, a análise de Carlos Heitor Cony tenta captar o espírito político de Gorki, que viveu no período mais intenso das transformações sociais, culturais e econômicas da Rússia. Alexei Maximovitch Pechkov nasceu em 1862 em Nijini-Novgorod. Aos 36 anos ele aparece para a literatura em definitivo e ganha o coração do povo russo, em todas as classes sociais. Vivendo na época violenta e tirânica dos czares, atravessando alguns movimentos revolucionários fracassados, como o de 1905, ele abraçou o socialismo, sendo preso e condenado à morte. Foi salvo por um grande movimento internacional de intelectuais.
Taxado equivocadamente de “pai da literatura proletária”, Gorki é julgado pela Academia Comunista, organismo máximo do pensamento soviético, em 1927. A tola questão: ele era ou não um “escritor-proletário”? A Academia decidiu que não, mas por sorte, Stalin ignorou esta picuinha acadêmica, talvez simplesmente por gostar do que escrevia Gorki, ou por saber das antigas divergências entre o escritor e Lenin.

De acordo com Cony, Lênin e Gorki foram socialistas, à maneira deles. “Em Gorki, o socialismo não passa a sua fase primitiva: amor aos homens, confiança no homem — aquele cristianismo eslavo que talvez mereça o nome de russismo. Gorki não aceitava, sobretudo, o problema da consciência, tal como Lênin o expunha. Para Lênin, a consciência era um produto do ser social, ao passo que Gorki acreditava que o ser social era um produto da consciência. Lênin era um erudito, homem disciplinado intelectualmente, amante feroz da lógica e da razão. Gorki, o autodidata contraditório e sentimental.”

E é justamente neste ponto que encontramos o verdadeiro espírito gorkiano: humanista por excelência e, sobretudo, sentimental. Suas personagens, mesmo as comprometidas com as lutas sociais, como as encontradas na peça “Pequenos Burgueses”, aparecem duras num realismo sem precedentes, todavia com seus corações envoltos pela mais pura ternura.

Em “As minhas universidades”, que não vou classificar como biografia de Gorki, pois me parece que quase tudo que ele escreveu está nesta categoria, encontramos belas descrições feitas a partir de uma visão deliciosamente humana: “Os Evreinov, mãe e dois filhos, viviam de uma pensão miserável. Logo nos primeiros dias observei a tristeza trágica com que a pobre viúva, de estatura pequena e apagada, estendia sobre a mesa da cozinha as compras insignificantes que fizera no mercado, procurando solucionar este difícil problema: como tirar de tão insignificantes pedaços de carne de terceira, quantidade suficiente de boa alimentação para três rapazes saudáveis, sem já contar com ela mesma. Taciturna, os seus olhos cinzentos refletiam a teimosia doce e resignada do cavalo esgotado pelo trabalho excessivo: o pobre animal arrasta a carroça na ladeira; sabe que não chegará ao fim, mas continua”. Notem que nesta descrição, dentre tantas outras presentes na obra de Gorki, não há nada de panfletário, de comunista, nem mesmo uma única linha na tentativa de explicar as causas da miséria dos Evreinov. Gorki apenas constata o sofrimento e usa para tal aquilo que o transformou num dos maiores escritores do século XX, o olhar do coração em conflito com a realidade.

O lado sentimental do autor de a “A Mãe” aparece mais nitidamente associado às mulheres. Bachkine, outro personagem de “As minhas universidades”, ladrão profissional, ex-aluno da escola normal, tuberculoso, “mais de uma vez impiedosamente espancado”, aconselhava Gorki: “Pela mulher, faria fosse o que fosse. Para ela, como para o demônio, o pecado não existe. Viver a amar, ainda nada se inventou de melhor.”
De certa maneira, o conselho do ladrão profissional calou fundo na alma do escritor. Quase no final de suas memórias, ele dedica um capítulo especial para o seu “Primeiro Amor” e num momento de reflexão emenda: “Quando não se sabe, inventa-se, e o que o homem inventou de mais sensato, foi amar a mulher e adorar a sua beleza; é deste amor que nasce tudo quanto é mais belo no mundo”.

Certamente celibatário, ao 23 anos Gorki conta ter conhecido Olga, dez anos mais velha, casada e que tinha uma filha, fruto de outro relacionamento. No início, ele alimenta-se de um amor platônico. Depois, patético, como todo amante deve ser, se declara em poemas e bucólicos passeios pelo lago. Neste episódio, Gorki não fica devendo nada aos escritores românticos: crises existenciais, medo da rejeição, o conflito moral de sabê-la casada etc. Porém, mesmo neste aparente e necessário pieguismo literário, o escritor não deixa seu velho estilo realista. É como se seu coração fosse ritmado por um batuque de alegria e esperança e a vida por ruídos de espanto e horror.

Olga é instruída, bonita e inteligente, um verdadeiro imã para que hoje chamamos cantadas, entretanto pobre. Vive como a maioria do povo russo, em dificuldades. O marido é preguiçoso e indolente. Sujeito que não se envergonha de ver a mulher se matar de trabalhar, às vezes como criada e cozinheira, às vezes como desenhista de retratos.

Gorki não pestanejou em convidá-la para viverem juntos. Ela faz suspense, não diz sim, nem não. Ele parte para outra cidade e ela fica. Depois de três anos há o reencontro. Desta vez Olga se decide e vai viver com o jovem escritor.

Os três, pois a filha de Olga também os acompanha, passam a morar numa casa úmida, fria e ruim. Pelo que parece, pois não temos a medida do tempo neste capítulo de Gorki, por um longo período eles fazem as refeições na casa do diabo, com o pão amassado pelo próprio, é claro. E o que enternece o escritor é que neste tempo todo, Olga não reclamou uma única vez da triste situação.
Não brigavam, mas discordavam no modo de encarar a vida. “Filosofas demais”, dizia a mulher ao novo marido. “A vida, no fundo, é simples e brutal; não devemos complicá-la, procurando nela um sentido extraordinário; o que devemos é aprender a suavizar-lhe a brutalidade. Mais do que isso, não conseguirás nunca. (...) O amor e a fome governam o mundo, e a filosofia faz sua desgraça. Vive-se para o amor, é o que há de mais importante na vida”, dizia Olga.

Num dia qualquer, o escritor descobriu o que quase todos descobrem e que só ousamos contar com todas as letras no século XX: o amor é chama. Somente o compartilhar diário do travesseiro para se conhecer a natureza dos elementos que extinguem este fogo.

Felizmente ou não, a sociedade industrial desobrigou os homens e as mulheres dos compromissos eternos. Atores coadjuvantes desse tempo bárbaro — movido pela máquina e pelo pragmatismo até mesmo no amor —, dois fatos foram suficientes para que eles se separassem. O primeiro, o mais terrível: Olga dormira enquanto Gorki lia um de seus manuscritos ao pé do seu ouvido. O segundo, e a gota d’água: foi quando o escritor chegou em casa transtornado depois de ter presenciado um policial espancar covardemente um judeu no mercado. “Quando lhe falei no judeu espancado, mostrou-se muito surpreendida: — E é isso que te deixa maluco? Que nervos tão frágeis os teus!”.

Gorki teve outras mulheres e parece ter amado de verdade somente a primeira. Ele morreu em 1936, suspeita-se que vitima de envenenamento. Talvez ele tenha morrido mesmo do mais sutil dos envenenamentos, aquele provocado pela absorção lenta da realidade e deste supremo escândalo que é viver sem se saber explicar. 

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