A lenda da corrupção no DNA do brasileiro - Foi Caminha o primeiro corrupto a pisar no Brasil?
José Fernando Nandé
Há uma lenda na política brasileira
a ganhar terreno todos os dias e que concede a Pero Vaz de Caminha, escrivão da
frota de Pedro Álvares Cabral, em 1500, a primazia no afamado "jeitinho
brasileiro". Pela lenda, no final de extensa carta ao rei Dom Manuel I, em que Caminha tece
pormenores sobre a nova terra descoberta e da própria expedição, o escrivão pedira
ao rei um cargo para seu genro. Mas, de acordo com o historiador e
jornalista Sinval Medina, essa história toda não passa de exagero até mesmo da
própria imprensa que, toda vez que corrupção no Brasil toma destaque nos
noticiários, a revive para ilustrar o tema.
Ou seja, por essa visão simplista da
história, há uma indução para se fazer crer que a corrupção no Brasil está
profundamente atrelada aos detentores de cargos públicos e a outros vícios
administrativos e que isso se deve ao DNA político herdado dos portugueses.
Genes que teríamos até hoje em nosso sangue, conforme destaca o historiador
Boris Fausto: "Uma percepção
corrente aponta a eternidade da corrupção em nosso país, invocando as raízes da
formação ibérica em que imperaram as relações sociopoliticas patrimonialistas
e, portanto, a indistinção do patrimônio público e do privado. Uma decorrência
dessa perspectiva é o fatalismo que tende a acompanhá-la. Se esse e outros
problemas graves do país estão inscritos no seu DNA, as possibilidades de
superá-los seriam remotas, na melhor das hipóteses". (O Estado de S. Paulo 19/6/09,
pg.2).¹
Ora,
examinando esse suposto DNA da corrupção, podemos adiantar que Caminha
realmente se utilizou do cargo para pedir um benefício ao rei, mas não um cargo
para o genro. Observem leitoras e leitores, como o próprio Caminha escreve
em sua tão famosa carta, em seu final, já como um pós-escrito:
"(...) E desta maneira dou aqui
a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E se a um pouco me alonguei, Ela me
perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez proceder assim pelo
miúdo. E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra
qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito
bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de
São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que Dela receberei em muita mercê. Hoje,
sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500).²
Pelo exposto, no final da carta observamos que
Caminha realmente tenta fazer uso de seus privilégios de funcionário da Coroa
ao elaborar o relato, que seria de sua obrigação de função junto à frota. Para
isso ele usa da estratégia de informar um grande fato, na esperança de que, com
a alegria de Dom Manuel I, o seu objetivo fosse alcançado: a remoção novamente
para Portugal de seu genro, um tal de Jorge Osório, que fora condenado a
degredo na ilha de São Tomé, em África. Pelo que explicam os historiadores, o
genro de Caminha não era flor que se cheirasse, pois havia recebido a
condenação pelos seus maus costumes, dentre eles, o assalto à mão armada. Isso
também nos dá a dimensão do drama pessoal de Caminha. Ao que parece, ele
preferia ver Isabel, sua única filha, juntada a semelhante sujeito, em mau
casamento, a tê-la sem ninguém, numa sociedade conservadora em que a mulher
casada, vivendo longe do marido, seria quase que um pecado, embora estivessem
em vigência em Portugal as Ordenações Afonsinas (1446)³, as quais separavam o
Direito Canônico do temporal.
E tinha razão o escrivão da frota, pois ele jamais
retornaria aos portos lusitanos para amparar sua filha. Caminha seria morto em
combate (dezembro de 1500) alguns meses depois de ter registrado o nascimento
do Brasil em carta, que fora levada ao rei pelo capitão Gaspar Lemos, destacado
para essa missão, enquanto o restante da frota seguia para a Índia. Sabe-se que
Dom Manuel I recebeu a missiva, mas quanto ao pedido de Caminha, por ausência
de dados históricos, ninguém imagina o desfecho.
Portanto, se Caminha não usou de seu posto para almejar cargo para seu genro, ele lançou mão do privilégio de pedir um favor
ao rei em assunto legal. Ora, esse pedido do escrivão da frota de Cabral, pela
moral comum, seria condenável, mas pela moral do Direito, seria um ato
admissível, posto que as tais Ordenações vigentes facultavam ao rei a
prerrogativa de perdoar ou comutar penas impostas. Recentemente, essa tradição
do Direito brasileiro, em que se dão ao réu recursos à última instância, foi
relembrada durante os debates do Supremo Tribunal Federal (STF) por ocasião da
admissão dos polêmicos embargos infringentes no julgamento da Ação Penal 470,
conhecida popularmente como ação do Mensalão.
Uso do cargo para pedir favores, o tráfico de influência
Para o escopo deste artigo, a história de Caminha
só nos serve para levantarmos dois pontos morais. O primeiro, a investidura em
cargo público. Segundo, o uso que se faz desse cargo para interesses pessoais
ou de grupos interessados.
No caso do genro de Caminha exclusivamente,
notamos que, pelas Ordenações se previam penas para os autores de
crimes contra a Coroa, como a adulteração de moedas ou atos de lesa-majestade.
A maior parte dos crimes era punida com o degredo, forçando o infrator a se
ausentar temporariamente, ou para sempre, de Portugal. Também estavam sujeitos
ao degredo aquele que praticasse sedução de moça virgem ou viúva honesta, roubo,
lesões corporais, e má-fé em transações comerciais. Dependendo da natureza de
seus crimes, concorriam contra os criminosos outras penas, como a capital ou condenação
às galés, castigos muito mais pesados do que o banimento ou degredo perpétuo. Uma
vez transitada em julgado, a sentença não poderia ser comutada, a não ser
"por uma graça especial" do rei. Ou seja, o monarca tinha poderes,
previstos em lei, para conceder indulto aos apenados. Então, o pleito de
Caminha era justo e qualquer atitude tomada pelo rei estava respaldada pela lei.
Embora o pedido de Caminha pudesse hoje ser
interpretado como oportunismo, por se aproveitar da situação do descobrimento,
não nos parece que há crime no pedido. Com muito esforço, poderíamos admitir
certa tentativa de tráfico de influência à luz de nossas leis atuais, que
consiste na prática ilegal de uma pessoa se aproveitar da sua posição
privilegiada dentro de uma empresa ou entidade, ou das suas conexões com
pessoas em posição de autoridade, para obter favores ou benefícios para
terceiros, geralmente em troca de outros favores ou pagamento. Ora, Caminha
detinha essa posição privilegiada, além de nomeado escrivão da frota, ele fora
também vereador em Lisboa, cargo reservado aos súditos do rei de boa origem,
mas não se utilizou de outros recursos, a não ser pedir, para colocar adiante o
seu desejo em relação ao seu genro e também não ofereceu pagamento ou outro
favor que não fosse a garantia de que iria continuar servindo bem ao seu
soberano (Vossa Alteza há de ser de mim
muito bem servida).
Notas
¹Observatório da Imprensa, número
776.
²Conforme texto original, Fundação
Biblioteca Nacional
³ Temos ainda as Ordenações
Manuelinas (1521) e Ordenações Filipinas (1603)
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