A arte de nomear incompetentes úteis ao governante (I)
José Fernando Nandé
Na época do Brasil Colônia, as
nomeações de funcionários em Portugal eram garantidas por lei e dependiam única
e exclusivamente da vontade do rei. Esse costume ainda sobrevive, e com força,
aqui entre nós. Interessa saber a razão. Para isso, vamos fazer uma breve
retrospectiva histórica desse velho costume de nomear, herdado pelos países da
Península Ibérica, em
especial Portugal e depois introduzido nas colônias, como foi
o caso brasileiro.
A primeira pista sobre a instalação
desse costume, no Brasil, vem da própria formação política da Península
Ibérica. Tanto Portugal quanto a Espanha têm suas origens profundamente
marcadas pela expansão do Império Romano. Aliás, uma das razões da decadência e
queda do Império vem justamente do ato de nomear. A rigor, para se obter cargos
públicos e dessa maneira buscar uma carreira política, o cidadão romano
dispunha de cinco formas: herança de sangue; eleição; nomeação; suborno; ou por
assassinato em que também concorria o suborno.
Em seus últimos anos, o Império
praticamente adotou as duas últimas formas. Assim, qualquer cargo poderia ser
comprado com os devidos acertos políticos, desde um posto na magistratura ou
até mesmo o de general, ou imperador. Ora, não há império que sustente em
tamanho nível de corrupção, e o Império Romano do Ocidente veio abaixo em 476
d.C.; e no período dos Césares, praticamente todos foram vítimas de
conspirações e morreram violentamente por pancadas, punhaladas ou envenenados.
Portugal deriva do Império Romano do
Ocidente, sendo que o Brasil, como colônia, vai absorver grande parte dessa
herança imperial, inclusive no Direito. Assim, para seguirmos adiante em nossa
investigação, vamos ter que, antes de tudo, comentar o pensamento reinante na
Grécia e sobremodo, em
Roma. Origens políticas da raiz desse nosso costume de
nomear.
O primeiro tópico que devemos levar
em consideração ao se examinar as relações de poder nesses estados antigos,
ainda modelos do nosso, é a noção de liberdade do homem e porque ele se
submetia tão facilmente à autoridade de um soberano, ditador, rei ou imperador.
Conforme nos explica o historiador Fustel de Coulanges (1830-1889), em sua obra
máxima denominada de A Cidade Antiga,
a liberdade nunca teve, tanto no Estado Grego quanto no Romano, o mesmo
entendimento que temos dela nos dias de hoje.
Ӄ, pois, um erro singular entre todos os erros humanos ter crido que
nas cidades antigas o homem gozasse de liberdade. Ele nem sequer tinha ideia
dela. Não acreditava que pudesse haver direito em relação à cidade e seus
deuses (...) o governo mudou várias vezes de forma; mas a natureza do Estado
permaneceu mais ou menos a mesma, e a sua onipotência diminuiu pouco. O governo
chamou-se alternadamente monarquia, aristocracia, democracia; mas nenhuma
dessas revoluções deu aos homens a verdadeira liberdade, a liberdade
individual. Ter direitos políticos, votar, nomear magistrados, poder ser
arconte, a isso se chamava liberdade; mas nem por isso o homem deixava de estar
submetido ao Estado. Os antigos, e sobretudo os gregos, sempre exageraram a
importância e os direitos da sociedade; esse fato se deve, sem dúvida, ao
caráter sagrado e religioso que a sociedade assumira originalmente.¹
Em outras palavras, Coulanges infere
que o direito de comando de algum homem dentre os outros homens é, para os
antigos, decorrência da vontade dos deuses, numa sociedade que nasce a partir
de simples religiões familiares individuais, com seus deuses lares e avança
para uma forma mais complexa, à medida que essas famílias se agrupam em
cidades, com deuses não mais somente familiares, mas deidades de natureza
coletiva. São esses deuses coletivos que darão a certos escolhidos o direito de
governar sobre os outros homens, com várias prerrogativas, inclusive a de
indicar seus auxiliares para a tarefa.
Notem que, nos dias atuais, embora
não exista mais a necessidade da concordância dos deuses para que um homem
venha a governar, a metodologia para o estabelecimento das investiduras em
cargos públicos por nomeação continua praticamente a mesma, passados mais de
dois mil anos.
Em nossos dias, ainda cabe ao
governante eleito, ou guindado ao posto de governante por outros métodos,
inclusive os não-democráticos, a nomeação de seus auxiliares para a formação de
uma estrutura burocrática de sua confiança. Pressupõe-se que, por ter
sobrevivido por todo esse tempo, não importando o regime adotado pelo Estado, a
nomeação, ou modernamente, a condução para cargos comissionados, é o que dá
sustentação a qualquer governo.
Portanto, não se concebe o Estado,
mesmo nas mais refinadas democracias, sem o cargo em comissão, pois sua
existência parte do princípio da confiança de quem nomeia e governa. Nomear, em
última análise, é um direito do governante; agora, se a nomeação é correta,
moral, de conformidade com a lei, ou legítima e necessária, são ponderações que
vamos fazer mais adiante.
O poder de nomear
Boa parte da civilização romana tem
seu molde na civilização grega, assim como a nossa tem seus princípios e
costumes na romana. Por isso, como já observamos, vamos nos concentrar nos
romanos e mostrar aqui alguns pormenores da época para que possamos traçar
paralelos com os nossos dias. Essa digressão histórica é necessária para a boa
compreensão das teses que sustentaremos em nosso trabalho e sem elas, quaisquer
futuras afirmações que façamos estarão desprovidas das fortes colunas que devem
sustentar a construção de nossas argumentações. Inicialmente, para nosso
propósito, devemos verificar como as nomeações eram tratadas no Império Romano
e para tal, contaremos com a ajuda do historiador Suetônio (69-122 d.C.), que
retrata os bárbaros costumes imperiais e o início da decadência do poder
romano.
Caio Júlio César (100 – 44 a .C.), por exemplo, tinha a
firme crença, como outros imperadores, que seu direito de governar vinha de sua
descendência direta dos deuses, ou seja, além da herança de sangue, ele
governava por direito divino: “Minha tia
Júlia é descendente de reis por parte de família de sua mãe; por parte da
família de seu pai encontram-se ligados os deuses imortais (...) os Júlios,
antepassados de nossa família, são descendentes de Vênus. Desta forma,
misturam-se a nossa raça a santidade dos reis que exercem tão poderosa
influência sobre os homens, e a majestade dos deuses, que mantêm debaixo de sua
autoridade os próprios reis”.²
Quanto ao ato de se nomear, ou do
cidadão ser indicado a cargos públicos, são várias as passagens que encontramos
em Suetônio. As
mais reveladoras estão nos capítulos dedicados a Calígula e ao seu sucessor,
Cláudio (Nero Cláudio César; que viveu do ano 37 ao ano de 68 depois de Cristo),
que era considerado um imbecil e, mesmo assim, exerceu vários cargos públicos,
inclusive o de imperador, aos 50 anos de idade, após a morte de seu antecessor,
Calígula, consolidado na história como louco.
Escreve Suetônio sobre ascensão Cláudio,
ainda antes de obter o cargo máximo do Império:
“Sob a autoridade de Caio, filho de seu irmão, que no início de seu
reinado procurava por meio de toda espécie de obséquios fazer-se uma reputação
favorável, alcançou as honras exerceu o consulado com ele durante dois meses.
No entanto, a primeira vez que se dirigiu ao Fórum com os fasces, uma águia
pousou na sua espádua direita. Dessa forma, foi designado pela sorte para
exercer, ao termo de quatro anos, um segundo consulado”.³
Uma bela passagem que ilustra
costumes que ainda temos aqui no Brasil, como veremos adiante, em que, até
mesmo alguém de notória ignorância, consegue altos postos em governos (vide casos da atual composição do Judiciário), desde que conte com um bom pistolão e
golpes de sorte. Ou seja, tudo fica mais fácil para quem tem um parente em
destacada posição de mando dentro de um governo.
Falamos até agora das benesses
obtidas por parente próximo do imperador. Mas, o poder dele nomear chegava a
qualquer cidadão. Tiremos como exemplo Tibério Nero César (viveu de 42 a .C até 37 d.C.; sucessor
de Augusto), que decidia, afora os cargos eletivos, que em sua época já eram
poucos, o destino de praticamente todos os funcionários do Império. Tibério “conseguiu introduzir no Estado uma certa
aparência de liberdade que conservou a antiga majestade, e o antigo poder do
Senado e da Magistratura”, narra Suetônio. “Não existiu nenhum negócio, pequeno ou grande, público ou particular,
do qual não prestasse contas aos padres conscritos. Sobre os consultava sobre
impostos, os monopólios, os edifícios a serem construídos ou reparados e até
mesmo sobre recrutamento e licenciamentos militares e sobre a distribuição de
legiões e das tropas auxiliares. Também lhes perguntava sobre quais generais deveriam
ser conservados nos postos de comando; a quem entregar a direção das guerras
extraordinárias; em que sentido e de acordo com tais fórmulas se deveria
responder às cartas dos reis...”. (4) Eis como um tirano pode mascarar
seu governo, pois é sabido que, embora mostrando-se generoso em público,
Tibério também exercia o governo com mão de ferro e que não dispensava o uso da
pena capital para eliminar seus inimigos, cassando seus antigos títulos de
nobreza e se apossando de seus bens. Ávido por dinheiro, se entregou à
rapinagem e arranjava os mais ignóbeis motivos para jogar em desgraça qualquer
cidadão ou província que lhes pudessem gerar algum lucro.
Quanto ao costume de se indicar
sucessores aos cargos vacantes por meio de suborno ou assassinato, a história
romana está repleta de exemplos. Tantos que somos forçados a escolher um caso
aleatório. Vamos, portanto, ao mais
famoso deles, a morte de Nero, que foi forçado ao suicídio depois de uma
conspiração familiar e dos próprios palacianos, que estavam cheios de seus
desmandos, temerosos inclusive de perderem a própria vida. Com Nero, a família inteira
dos Césares deixou de existir. Sucedeu-lhe Sérvio Suplício Galba, que não
pertencia à casa dos Césares, porém era da alta nobreza. Assim que assumiu,
Galba fez colocar no vestíbulo do palácio sua árvore genealógica, a qual
mostrava sua origem. Por parte de pai,
ela chegava até Júpiter, deus que garantia, dessa forma, a origem divina dos
poderes concedidos ao novo imperador, mas sem, no entanto, renegar o título de
César, que em si, por tradição, também lembrava a divindade do soberano. Aliás,
esse costume de ter “uma indicação divina” para o exercício do máximo poder,
vai continuar pelos séculos seguintes nas monarquias, mesmo depois da queda do
Império, com o poder sendo uma outorga não mais de deuses pagãos, mas do Deus
cristão, com a aprovação da Igreja Católica Apostólica Romana, que guardaria
para si esse privilégio de ungir os reis e príncipes por mais de mil anos.
Parece-nos, neste contexto do divino
que, durante o episódio de sua prisão, o condenado Luís Inácio Lula da Silva,
tentou, mas sem sucesso, numa missa chamada por muitos de “negra”, passar à
religiosa sociedade brasileira, a ideia que havia uma unção dos céus pelo seu
direito ao poder, mas não mais por direito de sangue, mas sim por direito de
origem sindical, ou seja, por supostos serviços prestados ao povo.
NOTAS
¹A Cidade Antiga, Coulanges, pg. 239
²A Vida dos Doze Césares, Suetônio,
pg. 16.
³Idem, pg. 247
4 Ibidem, pp. 165, 166.
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