ARTIGOS
O Português e o Latim no Campus de Espancamento
José Fernando Nandé
I. Introdução
Há a discussão entre acadêmicos brasileiros que versa sobre o uso das palavras latinas campus, campi. De acordo com alguns autores e, agora, consultores da lusitana língua, esses vocábulos deveriam ser substituídos pela palavra “câmpus” – ou “campus” apenas – tanto no singular quanto no plural. Tal discussão seria no sentido de trazer para o vernáculo uma palavra supostamente derivada das suas correspondentes latinas campus et campi, hodiernamente usadas no Brasil para designar o território, ou espaço, ocupado por instalação ou instalações físicas de universidades.
Este artigo sustenta que tal discussão é inócua, posto que o nome campus de há muito consta incorporado ao nosso idioma e corresponde ao substantivo campo e respectivo plural campos. Portanto, a posteriori deve-se demonstrar que a tentativa em curso de aportuguesamento de tal palavra está mais próxima de uma aberração linguística do que um acréscimo positivo à língua portuguesa e tudo por obra do equivocado e bárbaro marketing dos manuais de redação dos jornais.
II. O significado de campus
O uso do vocábulo campus, em latim, perde-se na noite do tempo. De possível origem grega, ele aparece em vários textos anteriores ao período Clássico inclusive, depois resiste aos períodos subsequentes da língua latina até o amanhecer no idioma português, inculto e belo, sempre com o mesmo sentido original, determinando um lugar, ou território, ou espaço, em perfeito acordo com os significados atribuídos a este verbete desde que ele é registrado pelos dicionários latinos:
Cāmpŭs, is – jardim, vergel, campo. 1º planície, plaino; campina cultivada, campo, veiga, terreno; produto da terra; 2º superfície igual, lisa, plana; 3º território; 4º Campo de Marte (em Roma), exercícios do Campo de Marte, comícios, assembleias do povo, votações, eleições; 5º campo da batalha, campo, liça, luta, contenda, curso, carreira.
Algumas citações clássicas para campus:
1 – Campos et montes peragrare (M. T. Cicero, 106 a.C – 43 a.C). Percorrer as planícies e os montes. [Dictionnaire Français-Latin, p. 143; 1868].
2 – Pingues Asiae campi (Q. Horatius Flaccus, 65 a.C e 8 a.C ). As férteis campinas da Ásia. [CHARLESWORTH, 1970].
3 – Coerulei campi (T. M. Plautus, 230 a.C – 180 a.C). As planícies azuladas (o mar). [Dictionnaire Français-Latin, p. 143; 1868].
4 – Attollitur unda campus (Publius Vergilius Maro, 65 a.C – 8 a.C) A planura (do rochedo) eleva-se acima das ondas. [P. Virgilii Maronis Opera omnia ex editione Heyniana, p. 731, 2V; 1819].
5 – Campus in quo exsultare possit oratio (M. T. Cicero, 106 a.C – 43 a.C). Campo (assunto) em que a eloquência possa desenvolver-se. [Dictionnaire Français-Latin, p. 143; 1868].
6 –Flubius que irrigat Cordoba, qui dicitur Bete, nascitur in campo Spanie et cadit in mare in oceanum ocidentale; currit milia cccxii. (Nominia Flubiorum, autor desconhecido, por volta de 800 d.C). “O rio que irriga Córdova, que se denomina Bétis, nasce num planície da Espanha e cai no mar no oceano ocidental, corre 312 mil passos.” [FURLAN, p. 308. 2006].
Pelo exposto, nota-se que os escritores latinos situavam campus na segunda declinação, pois esta palavra tem seu genitivo em i.
III. A declinação de campus e o acusativo como caso lexogênico da língua portuguesa
Caso
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Singular
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Plural
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Nominativo
|
campus
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campi
|
Vocativo
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campe
|
campi
|
Genitivo
|
campi
|
camporum
|
Dativo
|
campo
|
campis
|
Ablativo
|
campo
|
campis
|
Acusativo
|
campum
|
campos
|
Para efeito desta exposição e de clareza, citemos o seguinte exemplo tirado à segunda declinação, o nome próprio masculino Candidus, i:
Caso
|
Singular
|
Plural
|
Nominativo
|
Candidus
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Candidi
|
Vocativo
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Candide
|
Candidi
|
Genitivo
|
Candidi
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Candidorum
|
Dativo
|
Candido
|
Candidis
|
Ablativo
|
Candido
|
Candidis
|
Acusativo
|
Candidum
|
Candidos
|
Por último, e para os mesmos efeitos, o nome feminino universitas, atis (3ª declinação):
Caso
|
Singular
|
Plural
|
Nominativo
|
universitas
|
universitates
|
Vocativo
|
universitas
|
universitates
|
Genitivo
|
universitatis
|
universitatum
|
Dativo
|
universitati
|
universitatibus
|
Ablativo
|
universitate
|
universitatibus
|
Acusativo
|
universitatem
|
universitates
|
Devidamente declinadas, é possível verificar que essas palavras chegam ao português por meio do caso latino acusativo. “Cedo o latim vulgar reduziu esse sistema de desinências (morfemas) de seis casos a apenas um. (...) Na Península Ibérica, os nomes se fixaram nas do acusativo (o do objeto direto). Por isso este se diz caso lexogênico do português (e do espanhol)” [FURLAN, 2006; p. 322].
Nesse ponto não há divergência entre os gramáticos. O que foi explicado pelo professor Oswaldo Antônio Furlan é praticamente o mesmo que é observado pelo professor Napoleão Mendes de Almeida, em sua Gramática Latina: “O acusativo, que é para o português o caso lexicogênico, isto é, o caso de que provieram os nossos vocábulos, termina geralmente em m no singular das cinco declinações. (...) O acusativo plural das cinco declinações termina em s (Por esse motivo é que o plural das palavras portuguesas termina em s)” [2000, p.89].
Logo, ao se colimar a regra geral tendo como parâmetros os casos particulares, em português Candidus fica Cândido/Cândidos e campus fica campo/campos (segunda declinação). Universitas, universidade/universidades (terceira declinação).
Mas essa explicação ainda não é a bastante, porque são tantas as distorções nesse assunto, que ele tem que ser dilatado para o campo da Filosofia, precisamente ao campo da Lógica. Sabemos que a escrita é o sinal da palavra e, por meio dela, o da ideia. Porquanto se faz mister, para o saneamento de todas as dúvidas, a busca pela ideia representativa da palavra campus. Pelas definições dos dicionários verifica-se que ideia geral para campus é lugar (território), locus ou topus (topos, grego). Em latim e no português, assim como em outras línguas, a ideia geral expressa pela palavra pode ser particularizada, para isso basta que a ela se juntem outros complementos que imprimam à palavra dada uma restrição ou uma qualidade distintiva. Ou seja, o adjunto adnominal restritivo, em português, ou o caso genitivo, em latim.
Assim, podemos dizer que “O pensamento de Cândido” carrega a ideia geral de “pensamento”, que é particularizada pelo complemento “de Cândido”, que não é Pedro nem João. Em latim, sensus Candidi (Candidi sensus) – sensus no nominativo e Candidi no genitivo.
Igualmente, a palavra campo guarda a ideia geral de lugar ou território: universitatis campus, campo da universidade; universitatis campi et universitatum campi, campos da universidade e campos das universidades.
Portanto:
Campus da universidade pode ser aportuguesado tranquilamente: Campo da universidade, ou Campos da universidade; ou pela qualidade, campo universitário ou campos universitários.
É o que aconteceu, no português, por exemplo, nos seguintes casos: Campo de Marte; campo de futebol, campo elétrico, campo magnético, campo de estudos, campo de batalha, campo de ação, campo de equitação, campo de força etc.
IV. Há séculos que a ideia campus está incorporada à língua portuguesa
A discussão terminaria no tópico anterior, caso não fossem as insistências de manuais de redações e acadêmicos, que tentam dar uma nova grafia para esses velhos vocábulos que, por séculos, figuram na língua portuguesa.
Vamos dar um pequeno salto neste estudo até alcançar Luiz Vaz de Camões (1524-1580), que no Século XVI forneceu ao idioma lusitano a sua mais sublime obra, Os Lusíadas, publicado em 1572. Examinem o uso da palavra campo nas seguintes oitavas:
“Da Lua os claros raios rutilavam
Pelas argênteas ondas Neptuninas,
As estrelas os Céus acompanhavam,
Qual campo revestido de boninas;
Os furiosos ventos repousavam
Pelas covas escuras peregrinas;
Porém da armada a gente vigiava,
Como por longo tempo costumava.” (Canto I, 58)
"Este, despois, em campo se apresenta,
Vencedor forte e intrépido, ao possante
Rei de Cambaia e a vista lhe amedrenta
Da fera multidão quadrupedante.
Não menos suas terras mal sustenta
O Hidalcão, do braço triunfante
Que castigando vai Dabul na costa;
Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta.” (Canto X, 72).
Notem que, ao mesmo tempo em que campo passa para o domínio da literatura portuguesa e do vulgo letrado ou iletrado, o vocábulo latino de origem, ou seja campus, fica restrito aos círculos acadêmicos, determinando o locus, ou topus, da universidade, ou seja, sua localização física dentro de um espaço específico. Coimbra, a primeira universidade portuguesa (1290), ainda hoje dá o nome campus para o espaço físico ocupado pela totalidade de suas faculdades, que estão agrupadas em polos. Tal fato pode ser explicado, posto que, nos sete séculos de existência de Coimbra, em boa parte deles a língua acadêmica foi o latim, assim como em outras universidades da Europa. Para resumir, por séculos, o latim foi adotado pelas universidades como um sistema linguístico e não como uma língua disponível apenas para o fornecimento esporádico de palavras e expressões avulsas.
A Universidade Toulouse (1229) registra a vida no campus em sua página da internet no informativo “La vie du campus”. Outra universidade francesa, a de Paris (1170), igualmente se utiliza da palavra campus. Em Espanha, não é diferente, as tradicionais universidades de Salamanca (1218) e Valência (1499) se identificam a partir de um campus. Na Itália, a mais antiga universidade do mundo, Bolonha (1088), está identificada sob seu aspecto moderno, além-fronteiras, ao mostrar sua grandiosidade no uso de “multicampus”.
Ora, temos aí a tradição supranacional no uso da palavra latina campus e a prova de que o latim ainda influencia a linguagem acadêmica, mesmo depois de não contar mais com o status de língua oficial das universidades, dos acadêmicos, mestres e doutores, enfim, das ciências. Desconhecemos universidades tradicionais que não tenham ab ovo em seus brasões lemas em latim: Dominus Illuminatio Mea – O Senhor é a minha luz – Oxford University (Reino Unido). Veritas Christo et Ecclesiae – A verdade de Cristo e da Igreja – Harvard University (EUA, 1636). Hic et ubique terrarum – Aqui e em todo o mundo – Universidade de Paris (Universitas magistrorum et scholarium Parisiensis, nome oficial em latim). Scientia et Labor – Ciência e trabalho – Universidade Federal do Paraná (UFPR). Scientia Vinces –Vencerás pela Ciência – Universidade de São Paulo, USP (1934).
Aqui cabe uma observação importante no sentido de desfazer a hipótese de que o vocábulo campus deu um “passeio” pela língua inglesa. De acordo com essa hipótese, Campus teria frequentado as universidades do Reino Unido e da América do Norte e somente depois disso retornaria às línguas portuguesa, galega, francesa, espanhola e italiana para identificar o espaço físico ocupado por uma universidade. Pois bem, isso nos parece improvável ao se considerar uma linha do tempo.
Os falantes da língua inglesa incorporaram a palavra campus ao idioma da mesma forma pela qual ela foi incorporada pelos reinos da Europa continental (sobremodo pelos países que têm sua língua originada no latim, em especial os da Península Ibérica: Portugal e Espanha). O latim foi usado desde a fundação das primeiras universidades – e assim deveria ser – igualmente na Inglaterra e depois nos EUA como língua da ciência desenvolvida nessas instituições. Citemos apenas uma prova disso e será o suficiente: Principia Mathematica, obra máxima do físico, filósofo e matemático Isaac Newton, publicada no ano de 1687, no mais puro latim, quase seis séculos depois da fundação das primeiras universidades.
No Brasil, são tardias as faculdades e universidades: Século XIX, as faculdades de Medicina, Bahia e Rio de Janeiro, em 1808; e no Século XX, a partir da Universidade Federal do Paraná, 1912. Desde o começo, nosso ensino superior seguiu a tradição imposta pela cultura acadêmica europeia, sobremodo a portuguesa (no ensino de Medicina, Direito, Filosofia e Teologia, principalmente). Portanto, ao adotar o modelo europeu de ensino, o latim chega ao Brasil como língua natural das faculdades e universidades, com toda a carga sócio-cultural que isso significava e com a apropriação de uma cultura milenar. Portanto, ao se usar campus et campi, nada mais se faz do que dar continuidade à tradição acadêmica de novecentos anos, não constituindo esse uso uma agressão ao vernáculo nacional, mas deferência à primeira língua utilizada na era cristã para tirar o homem da ignorância.
Entretanto, em artigo, a professora Maria Helena de Moura Neves sustenta:
“Outro dado histórico importante, no caso dessa palavra, é que, embora sua forma seja latina, a fonte da importação foi o inglês, e não o latim, do mesmo modo que ocorreu, por exemplo, com a palavra bônus . O inglês, que não é uma língua latina, frequentemente vai buscar palavras no latim para denominação de coisa novas , e as vai buscar no nominativo, o caso em que a palavra aparece no dicionário, já que se trata de um empréstimo, e não de uma derivação histórica, que tem procedimentos naturalmente instituídos no próprio processo (por exemplo, o caso lexicogênico , para o italiano, foi o nominativo, e, para nós, foi o acusativo).”
Pelo exposto até agora, é evidente que não concordamos com a professora. Mas, para efeito de argumentação, vamos dar razão a essa hipótese de importação para a palavra “campus” do inglês. Verifiquem os seguintes pontos:
Primus: não houve mudança no significado da palavra campus, tanto no latim quanto no português, ela indica lugar, ou território e, no caso, da universidade, ipsis verbis.
Secundus: a palavra universidade é a que foi modificada. Ela é tão antiga quanto campus no latim, mas não com o significado que tem agora, o de universidade propriamente dita. Ela deriva do adjetivo universus, a, um (unus et vertere): todo, toda terra, o mundo inteiro. Universitas, atis é feminina e significa universidade, totalidade, o todo; companhia, corporação, comunidade, colégio, associação, sociedade. Universitas generus humanus – O gênero humano todo (Cícero).
Tertius: campus veio para o português como campo e significando lugar ou território; logo, com esse significado, usa-se sempre no aportuguesamento de campus o seu caso lexogênico, que é o acusativo.
Quartus: caso esta hipótese da “importação” do inglês estivesse correta, vejam que teríamos mais confusões. Pois, “câmpus de futebol” ou “câmpus eletromagnético” poderiam assim ser grafados em nosso idioma, já que essas expressões não existiam em Roma e nos foram apresentadas há menos de dois séculos e aí sim, a partir do inglês: field (pitch); electro-magnetic field. É notável que a situação se nos apresenta ainda mais complicada à medida que descobrimos outros exemplos: concentration camp, refugee camp – “câmpus de concentração”; “câmpus de refugiados”, seriam expressões possíveis a partir da hipótese da importação de campus do inglês.
Quintus: Definitivamente, campus da universidade se refere ao espaço ocupado por ela dentro de um território e não somente ao seu mobiliário ou a seus prédios, assim como campo de batalha refere-se ao território próprio para uma contenda e não especificamente ao armamento, soldados etc, que fazem parte do conjunto do teatro de operações bélicas. Campo de futebol se refere ao território delimitado onde o jogo se pratica e não especificamente aos jogadores, torcedores, vestiários etc.
V. Das comparações impróprias
Novamente poderíamos encerrar este artigo no parágrafo anterior, mas vamos adiante. Respeitosamente, temos que discordar novamente da professora Maria Helena de Moura Neves, que sustenta ao apresentar a grafia “câmpus”:
“Segundo as regras oficiais de acentuação, o acento circunflexo é o sinal necessário para indicar que se trata de palavra paroxítona, já que as palavras portuguesas terminadas em -u (s) não-acentuadas são oxítonas. A partir daí, o plural é câmpus , igual ao singular (como bônus , íctus , vírus).”
A palavra virus pertence à segunda declinação latina e significava originalmente veneno, peçonha, suco, humor, essência, droga ou sêmen, no caso de animais. Hoje, vírus serve para identificar, na Biologia, pequenos agentes infecciosos compostos pelos ácidos nucleicos DNA ou RNA – por essa natureza, os cientistas ainda se debatem na classificação exata do “ente” vírus no Reino Animal ou fora dele. Na Informática, o vírus também é conhecido pelo seu lado “venenoso”, pois é um software malicioso feito para infectar computadores.
Com efeito, vírus serve para definir tudo isso, mas jamais terá serventia como paradigma na conversão de campus para “câmpus”. Em latim, os muitos nomes terminados em “us” (são femininos na segunda declinação) têm três e somente três exceções como neutros e, ao mesmo tempo, defectivos: virus, pelagus (mar) e vulgus (vulgo). Então, encontramos alguns impeditivos para a comparação entre campus et virus na tentativa de justificar a suposta existência de “câmpus”.
Declinando a pala virus, i:
Caso
|
Singular
|
Plural
|
Nominativo
|
virus
|
Não existe
|
Vocativo
|
vire
|
Não existe
|
Genitivo
|
viri
|
Não existe
|
Dativo
|
viro
|
Não existe
|
Ablativo
|
viro
|
Não existe
|
Acusativo
|
virum
|
Não existe
|
Perguntas:
Prima: em latim, pode um nome (substantivo) neutro ser paradigma de um nome masculino, mesmo que da mesma declinação?
Secunda: o português tem palavras neutras?
Tertia: em latim, pode um nome (substantivo) defectivo, que só existe no singular, ser paradigma de um nome que se flexiona em número?
Quarta: pode um nome que não tem o acusativo plural ser comparado com um nome que possui os dois acusativos e que, portanto, conta com as condições para ser aportuguesado por meio desse caso e de forma direta?
Quinta: pode em lógica a parte ser maior do que o todo e no português e latim, a regra de exceção abranger a regra geral?
Sexta: é o inglês o idioma que deu origem ao português?
VI. Da “autoridade” linguística dos manuais de redação e jornais
No Brasil, infelizmente, ainda se usa per fas et per nefas o método da autoridade em oposição ao método científico. Assim, ao vulgo, o grito discordante de um redator de jornal, numa tarde de vento, é bastante para uma nova regra dada à língua ou a quaisquer outras coisas. – Socorro! – Desse alarde em diante será apenas uma propagação de erros constantes. E aos entorpecidos pelos juízos ligeiros, tais regras irão fazer o mesmo efeito da luz para os que estão perdidos no talvegue das sombras ou trarão a mesma consequência da fé para os arruinados no umbroso vale da morte.
Mas não se desesperem, porque a Lógica nos socorre no velho silogismo: toda autoridade é humana e o homem é falível; logo, a autoridade, mesmo de grande valor intelectual e de moral inquestionável, pode falhar ao determinar uma verdade doutrinária, caso não se dobre ao método científico, que procede por demonstração e recorre ao processo da evidência intrínseca.
“O mestre o diz”, repetiam os discípulos de Pitágoras ao tentarem provar suas doutrinas e com isso estavam contentes. Grande foi Pitágoras, porém pequeno o método de seus discípulos. Método do “Amém” que, se continuado, conduziria certamente à estagnação da ciência, conferindo a autoridades humanas uma infalibilidade que elas não têm. “O apelo à autoridade só pode intervir, em resumo, para guiar a indagação ou confirmar asserções demonstradas segundo as exigências científicas. Vê-se, assim, que o argumento da autoridade é, conforme a expressão de Santo Tomás, ‘o mais fraco dos argumentos’.” [Jolivet, p. 143; 1969].
Dessa forma, “o mestre o diz”, são elaborados os manuais de redação. Numa penada, os redatores desses manuais simplesmente nos mandam esquecer a anciã língua latina e carpir nossa lusitana língua condenada à morte por maus-tratos diários nas páginas da soberba imprensa.
“Câmpus. Aportuguesando: o câmpus, os câmpus” (sic, Manual de Redação e Estilo do Estado de S. Paulo, p. 118). Assim, ex cathedra, sentado na cadeira de São Pedro, o autor do Manual dá seu veredito, sem mais explicações. É a divina palavra aos sectários da infalibilidade das cartilhas. Na edição disponível na internet, o manual da Folha de São Paulo é mais sintético ainda: “campus (lat.)”, ou seja, a Folha manda simplesmente grafar campus, sem distinção entre singular, plural e explicação alguma ao que classifica de estrangeirismo.
O pior é que a coisa não termina por aí. A moda dos manuais de redação, movida por apelos de marketing, se espalha pelo Brasil e cada periódico resolve construir a própria gramática. Embora feitas para o consumo interno dos jornais, rádios, TV e internet – repórteres, redatores e editores – essas “gramáticas” tornam-se livros de cabeceira de estudantes que se contentam com o “prato feito” em prejuízo do estudo elaborado, com base na razão e não somente no falar ex professo.
VII – “Câmpus” em vez de campus, uma questão de marketing
Ab initio verificamos que as grafias “câmpus/campus” não se justificam no português e muito menos no latim. Mas, nisso tudo há um fato e pelo menos uma pergunta. Fato: as grafias campus et campi estão sendo alteradas inopinadamente por várias instituições de ensino brasileiras, às vezes por “câmpus” (doutrina do Jornal Estado de S. Paulo) e outras por “campus” (doutrina da Folha de S. Paulo). Pergunta: qual é a razão de tanto esforço para se escrever fora dos padrões de nossa língua? Para responder vamos recorrer aos jornais, raízes do problema, ao insistirem nessas grafias equivocadas.
Os manuais de redação começam no Brasil como normas de estilo e gramática e, com o decorrer do tempo, passam a ser o lugar de apresentação da postura ética das empresas jornalísticas, bem como dos modos de fazer jornalismo. A preocupação dos jornais, ao produzirem seus manuais, não poderia deixar de ser outra: sua relação com o leitor. Há uma preocupação didática com a audiência. Ela está vinculada a uma das funções centrais do jornalismo: a pedagógica. (VIZEU; CORREIA, 2007).
Ora, se um manual de redação expressa a “preocupação” dos jornais com o leitor – e até onde se sabe é o leitor quem compra os jornais – haverá também “preocupações” do capitalista, o dono do jornal, que se estendem ao mercado e a imagem do produto neste mercado. Como há uma guerra constante dos jornais em busca de leitores-consumidores, o manual de redação, vendido como “apresentação de postura ética da empresa jornalística", passa também a ser um argumento de vendas, ou produto para o marketing empresarial.
Em outras palavras, na guerra de marketing, os jornais usam seus manuais de redação para convencer o leitor (leia-se consumidor) de que em suas páginas está o melhor produto, elaborado com os melhores ingredientes “inteligíveis” para quem tem uma educação mediana e precisa consumir informação de forma rápida, sem pensar muito no significado das palavras, em semânticas e sintaxes. Portanto, à medida que o apelo comercial se intensifica, ao se oferecer facilidades aos leitores, os jornais padronizam a linguagem de acordo com os parâmetros obtidos em pesquisas de mercado, traduzidos pelo “perfil do leitor”.
É outro fato que esse leitor não estudou latim, porque as escolas não ensinam mais latim. Logo, dentro da função central do jornalismo que é a “pedagógica”, usar termos latinos foge totalmente da “didática com a audiência”, pois essa didática pretensamente ética passa pela simplificação da linguagem, mesmo que para isso se tenha que abrir mão de algumas regras e padronizações da língua portuguesa. Em resumo, um texto fácil, mesmo que pobre e defeituoso, atrai leitores, melhora a audiência, e faz vender mais. Esse é o espírito, essa é a miséria.
VIII – Campus em vez de ager, uma questão ideológica
A propósito, já que estudamos o emprego da palavra campo, é bom que se diga que ela também sofre “pressões ideológicas” encampadas pelos jornais quando se refere às coisas próprias da agricultura ou da pecuária. Voltemos ao registro de campus no dicionário, especificamente do registro 4 em diante. Na época de Cícero, a palavra campus, por redução, era praticamente sinônima da expressão Campo de Marte e por extensão, para tudo que podia ser realizado naquele espaço, desde assembleias do povo, que definiam a carreira política de um jovem tribuno, ou até uma luta ou contenda. Hoje, nesses significados, é lógico que o verbete campus está fora de uso. Entretanto, esse processo reducionista apontado para Campo de Marte se repete em nossos dias com a tentativa dos meios de comunicação de transformar campos no sinônimo geral de agricultura, agropecuária e tudo que faz parte desse universo. Para tal, igualam campus ao nome ager, agri – campo, terreno cultivado, o campo e não a cidade – ou ao adjetivo agrarius, a, um – do campo, rural.
Desde o Brasil colônia e até nossos dias, caso se consultem os livros e periódicos correspondentes a este período, verifica-se que a palavra campo sempre guardou seu significado geral de lugar, espaço ou território. Mas ao mesmo tempo, e com intensidade a partir da industrialização e consequente urbanização, ou seja, a partir da República Burguesa – na interpretação de Caio Prado Júnior – as correntes de transmissão do pensamento da nova elite social brasileira passaram a usar e abusar da palavra campo como qualitativa das coisas e pessoas que compõem o espaço agrícola, na tentativa de explicar este Brasil, que assumia suas feições urbanas, em nova realidade, inclusive para aqueles brasileiros inicialmente radicados em ambiente rural. A revolução burguesa do final do século XIX e início do século XX, que se aproveitava de uma mão-de-obra “vadia” do final do regime servil, também iniciaria assim o processo de redefinição de significados de palavras para explicar o novo statu quo e para mascarar problemas sociais existentes.
Nesse sentido, na década de 1970 o matiz ideológico do “homem do campo” foi cantado e massificado pela dupla sertaneja Dom & Ravel, estigmatizada por suposto apoio à Ditadura Militar:
“Obrigado ao homem do campo
O boiadeiro e o lavrador
O patrão que dirige a fazenda
O irmão que dirige o trator (...)”
É evidente que na música, esse “homem do campo” não tem um perfil específico ou particular, podendo significar latifundiário, pecuarista, pequeno produtor, meeiro, colono, ou trabalhador volante (boia-fria). E de maneira similar, campo também abrange conceito de território rural, porém sem quantificá-lo, podendo ser uma grande fazenda ou latifúndio, um pequeno sítio, uma chácara, ou qualquer ambiente fora das franjas urbanas. Em consequência, produtos do campo surgem como resultado da produção agroindustrial que não questiona o método de produção em todas as suas vertentes: econômica, de saúde, ou de proteção ao meio ambiente:
“Obrigado ao homem do campo
Pelo leite o café e o pão
Deus abençoe os frascos que fazem
O suado cultivo do chão
Obrigado ao homem do campo
Pela carne, o arroz e feijão
Os legumes, verduras e frutas
E as ervas do nosso sertão
Obrigado ao homem do campo
Pela madeira da construção
Pelo cocho de fios das roupas
Que agasalham a nossa nação
Pelo cocho de fios das roupas
Que agasalham a nossa nação (...)”
Essa artificialidade da palavra “campo”, hoje reproduzida pelos meios de comunicação para descrever a realidade do espaço agrícola moderno, pode ser verificada com certa facilidade, pois o campo como ideia das elites urbanas não é o mesmo do ideário de quem vive no ambiente rural. No Brasil, ninguém que sobrevive da terra se identifica como “homem do campo” quando perguntado sobre a ocupação ou profissão que exerce. As respostas necessariamente cairão em produtor agrícola, agricultor, trabalhador rural, patrão, pecuarista, boiadeiro, sitiante, peão, tratorista, braçal, volante, boia-fria etc. De igual maneira, ninguém diz que veio ou vai para o campo. Aqui no Brasil, o bom caboclo diz que veio da roça, da fazenda, da lida, do sítio, dos cafundós, donde Judas perdeu as botas, mas jamais diz que veio do campo.
Observem que, em contrapartida, expressões ligadas aos movimentos sociais e que identificam os trabalhadores como camponês, campesino, campesinato, estão fora do vocabulário da imprensa brasileira.
IX Conclusão
Este artigo se fez mais longo do que o planejado. Ao desenvolvê-lo, percebemos que certos aspectos precisavam ser detalhados para a melhor compreensão dos tópicos. Há de se crer que o escopo principal foi atingido – a demonstração das incongruências dos argumentos de quem defende uma escrita diferente em português para as palavras latinas campus et campi.
Neste trabalho, também consideramos demonstrado que a grafia “câmpus” não se justifica em nossa língua e que campus também não é uma palavra do nosso vernáculo em contraste com o seu equivalente campo, que é o aportuguesamento indicado e correto.
Por outro lado, verificamos que há aspectos históricos que não podem ser desprezados no uso dessa palavra latina para identificar o espaço ocupado pelos prédios e mobiliários das universidades e faculdades. Historicamente, não há equívocos em se usar campus et campi, como não há argumentos históricos convincentes para tais mudanças.
Tecnicamente, nesse estudo não se descobriu um apelo popular, ou da literatura, para a mudança proposta. Os que propõem as novas grafias são os manuais de redação de jornais, sem justificativas que se sustentem na construção da língua. Infelizmente, parte da comunidade acadêmica já encampou a proposta e defende, não sem equívocos, as novas grafias.
Por fim, ao se verificar como o caso é tratado em outros países, gostaríamos de destacar algumas soluções inteligentes para o problema – se é que ele existe no caso brasileiro. A Universidade de Coimbra livrou-se de ter que declinar a palavra latina campus simplesmente adotando esse nome para a totalidade de suas instalações e dando o nome de polo para as subdivisões. Então, o campus da Universidade de Coimbra tem vários polos. Ou ainda, a solução encontrada pela Universidade de Bolonha, ao criar a expressão multicampus, que nada mais é do que um conjunto de campi. Nessas soluções, há a inteligência de não se espancar as línguas nativas e muito menos o latim.
Bibliografia
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CHARLESWORTH, Martin Percival. Trade-routes and commerce of the Roman Empire. 1970: Cooper Squadre Publishers.
FURLAN, Oswaldo Antônio. Língua e literatura latina e sua derivação portuguesa. Petrópolis: Vozes, 2006.
JOLIVET, RÉGIS. Tratado de Filosofia I – Lógica Cosmologia. 1969, Agir, Rio de Janeiro.
LODEIRO, José. Traduções dos textos latinos. Porto Alegre: Editora Globo, 1960.
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A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA
E A INTERDISCIPLINARIDADE – PROPOSTA DE APLICAÇÕES
RESUMO
A OCDE, por
meio do Pisa, aponta que os estudantes brasileiros estão abaixo do mínimo
aceitável pela entidade para que os alunos possam exercer a cidadania, a se
considerar o aprendizado em várias disciplinas, sobremodo na Matemática. Este
artigo procura demonstrar que já há uma base teórica para melhorar o desempenho
dos alunos a partir da formação de professores, propõe perspectivas para melhor
efetivação dessa base em sala de aula por meio da interdisciplinaridade, além
de sugerir exemplo prático, com uso de materiais simples na composição do
Laboratório de Ensino de Matemática (LEM). Também traça uma análise do contexto
do ensino da Matemática na perspectiva da Terceira Revolução Industrial, em
contrastes com observações antropológicas-históricas e de linguagem sobre o ato
de contar, a partir dos nomes dos numerais e suas representações romana e
hindo-arábica, em aplicações nas disciplinas de História, Língua Portuguesa e
Matemática.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade,
Matemática, Formação de Professores, Números Naturais.
INTRODUÇÃO
O jornalista e matemático George G. Szpiro, no prefácio de sua obra A vida secreta dos números, descreve uma
hipotética cena muito interessante, a qual, certamente, já deve ter se repetida
com quem lida com Ciências Exatas, e isso em qualquer lugar do mundo. Ao exibir
seus talentos numa festa, comenta Szpiro (2011), se um sujeito declama versos de
poema desconhecido, logo será considerado erudito e cheio de charme. Ao passo
que, se ele recitar uma fórmula matemática, ninguém vai achar graça e
provavelmente, ele receberá o título de “o convidado mais chato”.
Na mesma festa, com naturalidade e “com a concordância dos convivas”,
observa Szpiro (2011), “a maioria das pessoas admitirá não ser, nunca ter sido
e jamais vir a ser boa em matemática”. Se, por um lado, pessoas letradas
confessam alguma deficiência em outras áreas, artes e literatura, por exemplos,
ela corre o risco de ser taxada de ignorante, por outro, qualquer deficiência
no conhecimento de matemática é aceita com compreensão por todos. Ou seja, há
nessas observações algumas constatações empíricas: existem deficiências
confessas na aprendizagem da Matemática, porém uma deficiência socialmente
aceita, ao passo que, aquele que se aventura neste campo do conhecimento, passa
a ser “marginalizado”.
Por dedução simples, concluímos que, se há deficiência na aprendizagem,
essa deficiência é decorrente do ensino, considerando que temos um binômio
indissociável entre esses dois entes da educação. De fato, essa deficiência
matemática é demonstrada por vários estudos de organizações de pesquisa,
privadas ou públicas. Um dos mais recentes foi divulgado pela assessoria de
imprensa do Ministério da Educação (MEC), em 06 de dezembro de 2016, com base
nos dados de 2015 do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa)
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Pisa
constata que o Brasil figura há pelo menos 10 anos entre os países com baixo
desempenho na área educacional. Esse programa da OCDE mede o conhecimento dos
estudantes de 72 países em leitura, Ciências e Matemática. Nessas áreas, a
média dos brasileiros ficou aquém das alcançadas pelos estudantes dos outros
países avaliados. “Em matemática, o país apresentou a primeira queda desde
2003, início da série histórica da avaliação, e constatou que sete em cada dez
alunos brasileiros, com idade entre 15 e 16 anos, estão abaixo do nível básico
de conhecimento”, revela o material jornalístico do portal do MEC (2016).
Em matéria sobre essa pesquisa do Pisa, o jornal Valor Econômico (2016)
destaca o resultado nosso mau desempenho em matemática e aponta que o Brasil
alcançou média nesta disciplina de 377 pontos, contra os 490 pontos da OCDE;
“70% dos alunos brasileiros ficaram abaixo do nível 2, considerado o mínimo
aceitável pela OCDE para que o aluno possa exercer a cidadania, percentual que
é maior na República Dominicana (90,5%) e bem menor na Finlândia (13,6%)”
(VALOR ECONÔMICO, 2016). Assim, o Brasil se posiciona como um dos países com
alunos de pior desempenho em Matemática, conforme informa o jornal:
Esses números trazem um alerta para as autoridades brasileiras e também para
educadores ligados ao ensino das disciplinas avaliadas, especialmente da
Matemática. Quanto às autoridades, o Valor Econômico (2016), na mesma matéria
já citada, revela a opinião da secretária-executiva do MEC, Maria Helena de
Castro, sobre o desempenho global do Brasil na pesquisa, incluindo outras
disciplinas, que também não se demonstraram satisfatórios. “Para ela [Maria
Helena de Castro] o caminho para a reversão do quadro educacional brasileiro
passa por melhorar a formação dos professores e a qualidade do material
didático”. Isto posto, temos a questão, a qual vai orientar este trabalho: que
mecanismos contamos para melhorar o ensino de Matemática, levando-se em conta a
formação de professores; o trabalho multidisciplinar seria um desses mecanismos?
Pois bem, ao analisarem o mesmo assunto, a reversão do quadro educacional
brasileiro, especialistas acrescentam outros pontos para se alcançar algum
sucesso e mudar a realidade atual, especificamente na matemática. Entretanto,
nesta revisão bibliográfica vamos nos prender somente a um dos pontos
ressaltados: formação de professores, com sugestão de prática em sala de aula.
Para tal, vamos fazer uma revisão bibliográfica, em que devemos considerar as
novas metodologias da matemática em Metodologia
do Ensino de Matemática (CLEMENTE, C.; GONÇALVES, J. B. 2014), acrescidas
de estudo mais detalhado da interdisciplinaridade aplicada conforme sugere a
clássica obra Interdisciplinaridade e patologia do saber (JAPIASSU, H.
1976).
A seguir, na parte de embasamento da sugestão de prática, vamos eleger
estudos com observações antropológicas sobre as condições gerais da ciência na História da Cultura: Origem e evolução (BIRKET-SMITH, R.
1962) e outros fatos históricos em Os
números: a história de uma grande invenção (IFRAH, G. 2010). Em algumas
fases do trabalho, também vamos nos servir de artigos acadêmicos e outras obras
clássicas que ilustram o assunto.
DESENVOLVIMENTO
Terceira Revolução Industrial e a
educação para a vida
O educador e matemático brasileiro Ubiratan
D’Ambrosio, em artigo adaptado e inserido na obra Metodologia do Ensino de matemática, afirma que os princípios da
Declaração Universal dos Direitos Humanos “respondem a uma filosofia de
educação muito diferente daquela que prevalecia em meados do século XIX, quando
as grandes partes dos conteúdos que ainda hoje são ensinados foram incorporados
aos sistemas escolares” (D’AMBROSIO, apud GONÇALVES, BRASSOLATI, 2014, p. 10).
Levanta-se, pois, uma relação entre conteúdos e a época histórica que se
refletem diretamente no binômio ensino e aprendizagem e, por consequência, na
formação do professor de Matemática.
A partir da década de 50, deu-se início a
um importante processo de expansão na educação brasileira. Hoje podemos dizer
que há possibilidade de termos todas as crianças na Educação Básica, 1ª a 4ª
séries do Ensino Fundamental, somando-se à oferta de vagas das escolas públicas
e gratuitas as vagas oferecidas pelas escolas pagas. Mas não basta colocar
todas as crianças na escola se insistirmos em programas e conteúdos defasados e
obsoletos, em grande parte inútil e desinteressante. Esses conteúdos foram
introduzidos nos sistemas escolares com outros objetivos, e baseados em
conhecimento muito limitado, que prevaleciam no século XIX e grande parte do
século XX, sobre como se dá a aprendizagem e sobre a própria natureza da
Matemática” (D’AMBROSIO, apud GONÇALVES, BRASSOLATI, 2014, p. 10).
Por esse ponto de vista, há de considerar os
objetivos sociais que preponderam neste início de século XXI. O educador
Ubiratan D’Ambrosio, no texto adaptado já citado, nos fala do período
compreendido depois da Revolução Industrial – período em que o Capitalismo
admite a escola privada ou pública, com caráter utilitário, principalmente no
que concerne à formação de mão-de-obra especializada, com foco no mercado.
Porém, a Economia e outras ciências já detectam um novo período histórico pelo
qual passamos neste momento. Trata-se da Terceira Revolução Industrial (Revolução Técnico-Científica-Informacional)
com os seguintes desdobramentos:
No mundo do trabalho, a
Terceira Revolução Industrial, sobretudo a globalização, traz como um dos seus
desdobramentos mais visíveis as novas tecnologias, o desemprego e as novas
formas de organização do trabalho. As propostas neoliberais têm produzido
efeitos deletérios no mercado de trabalho, tendo como um dos maiores problemas
o aumento do desemprego dos setores produtivos, com os trabalhadores sendo
expulsos do mercado de trabalho (MEDEIROS,
S. M.; ROCHA, S. M. M. 2005, p. 399).
A Terceira Revolução Industrial é profundamente
marcada pela inovação tecnológica constante, obtida a partir do desenvolvimento
técnico-científico e que determina a formação de mão-de-obra melhor preparada e
superior à fase econômica anterior. Pois bem, se se deseja uma mão-de-obra
capaz, a Matemática, em razão dessa Terceira Revolução Industrial, será
“forçada” pelo capitalista a servir-lhe primeiro como ciência e depois como
aplicação à tecnologia.
A ciência e a tecnologia visam atender às
necessidades das classes dominantes e dos governos que representam empresas
poderosas, de modo que somente uma pequena parcela da população pode usufruir
de seus serviços e inovações, acentuando a desigualdade social, ao mesmo tempo
em que garante o lucro de um seleto grupo de empresas. (SILVEIRA, R. M. C. F.; BAZZO, W. A. 2005, p. 11).
Nota-se a persistência, e com maior grau no
atual estágio de nossa civilização, da contradição entre a filosofia da
educação descrita por Ubiratan D’Ambrosio – com o estabelecimento de uma elite
dominante pelo domínio da técnica (e dos saberes, o da Matemática, inclusive) –
e a escola desejada, com o direito à educação para todos, conforme a Declaração
dos Direitos Humanos em texto reproduzido por Clemente e Gonçalves (2014):
A educação deve ser dirigida para o
desenvolvimento pleno da pessoa e para reforçar o respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais. Deve promover compreensão, tolerância
e amizade entre todas as nações, grupos raciais e religiosos, e deve fazer
avançar os esforços para se alcançar a Paz universal e duradoura (CLEMENTE, C.; GONÇALVES, J. B. 2014, p. 10).
Uma velha sentença latina nos diz que non scholae, sed vitae discimus (não é
para escola, mas para a vida que aprendemos). Muito bem, nossa vida se dá no
Capitalismo, que envolve, naturalmente, o mercado. Assim, o professor fica
diante do desafio: ensinar para a vida ou preparar para o mercado? A resposta
está nos Parâmetros Curriculares Nacionais, no item referente à Matemática para
o Ensino Fundamental:
O desafio que se apresenta é o de
identificar, dentro de cada um desses vastos campos, de um lado, quais
conhecimentos, competências, hábitos e valores são socialmente relevantes; de
outro, em que medida contribuem para o desenvolvimento intelectual do aluno, ou
seja, na construção e coordenação do pensamento lógico-matemático, da
criatividade, da intuição, da capacidade de análise e de crítica, que
constituem esquemas lógicos de referência para interpretar fatos e fenômenos (1997, PCNs, apud CLEMENTE, C.; GONÇALVES, J. 2014,
p.9).
Esse pressuposto dos Parâmetro Curriculares, na
realidade, resolve o dilema que aparentemente se apresenta: ou uma filosofia
mais humana para a escola, voltada para o desenvolvimento global do aluno; ou a
educação para o mercado competitivo dentro das exigências da Terceira Revolução
Industrial. Pois, ao se aplicar esses Parâmetros, o professor de Matemática
estará educando o aluno para a vida, fornecendo, ao mesmo tempo, todo
ferramental para o educando enfrentar, posteriormente, o mundo do trabalho, o
mercado em si, com os corretos e necessários subsídios para o desenvolvimento
do pensamento lógico matemático, a criatividade e a capacidade de análise
crítica.
Interdisciplinaridade
No Brasil, identificamos a discussão sobre o
conceito da interdisciplinaridade desde os anos 1970, por vários autores sem,
no entanto, se alcançar um consenso entre eles. “A despeito dessa diversidade
de concepções, o termo interdisciplinaridade tem sido usado largamente com o
sentido amplo de relacionamento entre disciplinas” (PIERSON, A. H. C.;
NEVES, M. R. p.20, 2011). A interdisciplinaridade é “a axiomática comum a um
grupo de disciplinas conexas e definida no nível hierárquico imediatamente
superior, o que introduz a noção de finalidade” (JAPIASSU, 1976, p. 74). Ou seja, a
interdisciplinaridade não carece de demonstração de sua necessidade no ensino,
pois advém de uma evidência comum às disciplinas, que concorrem no mesmo
conteúdo e princípios a serem desenvolvidos em sala de aula.
É notável que essa definição de vanguarda por
parte de Japiassu, inferida há mais de 40 anos, na década de 1970, se faça em
oposição “ao modelo fragmentário de produção de conhecimentos e de ensino” (PIERSON,
A. H. C.; NEVES, M. R. 2011, p. 20) e que ganhe força até alcançar os PCNs,
demonstrando seu caráter atual e necessário para a formação de professores, no
sentido de suprir a demanda do educando por conhecimentos científicos conexos.
Porém, de acordo com Pierson e Neves (2011), para ser aplicada, a
interdisciplinaridade enfrenta alguns problemas relacionados aos entraves
colocados pelos professores especialistas, como o status das ciências, as
linguagens e até mesmo os de ordem epistemológicos.
Entre os obstáculos à integração das disciplinas
encontram-se as diversas formas de resistência e empecilhos colocados pelos
especialistas à aproximação com outras áreas; em alguns aspectos semelhantes
aos que Bachelard (1977) chamou de obstáculos
epistemológicos. Nesse contexto, as diferenças entre o status das ciências,
entre suas linguagens próprias, seus métodos, seus objetos de estudo podem
constituir obstáculos de ordem epistemológica, já que formam o arcabouço dos
saberes de referência de cada especialista e em situação de contato pode ser
difícil compreender a posição (referência) do outro (PIERSON, A. H. C.; NEVES,
M. R. 2011, p. 22).
Ou seja, o especialista se sente confortável dentro de sua especialidade
e tende, por inércia, manterem-se dessa maneira, seguindo o mesmo padrão fragmentário
praticado, ou até mesmo imposto a ele, nos bancos escolares. Para se superar
essa inércia, há de se buscar a solução na formação de professores.
Esta preocupação com a formação global do homem é um
ponto chave a ser considerado, visto que este homem precisará ser capaz de
levar a cabo as soluções para demais preocupações. A formação de professores
capazes de superar esta visão fragmentada do conhecimento e construir projetos
de ensino interdisciplinares assume, então, um papel estratégico em vista do
compromisso destes profissionais com a construção da cidadania e com o preparo
para o posicionamento e atuação consciente do cidadão frente aos novos problemas
que se delineiam (PIERSON, A. H. C.; NEVES, M. R. 2011, p. 20).
As estratégias para se atingir a interdisciplinaridade passam, portanto,
por uma mudança de comportamento do especialista, mas sem que ele deixe de lado
seus conhecimentos específicos, buscando um ambiente de colaboração dentro da
escola, adotando uma visão generalista. Esse esquema colaborativo é delineado
por Japiassu ao sugerir um “sistema de dois níveis de objetivos múltiplos, com
a coordenação procedendo do nível superior” (JAPIASSU, 1976, p. 74). Esse
sistema, seria, portanto, composto por um nível de discussão e decisão entre os
especialistas e um segundo nível de aplicação propriamente dito, na relação
entre as disciplinas e seus saberes.
Prática interdisciplinar
Para ilustrar o que foi defendido até este ponto deste trabalho, e para
cumprir seu escopo inicial, vamos partir de uma situação hipotética em uma
escola qualquer. No programa de Matemática do 6º ano prevê-se o ensino dos
conjuntos numéricos, a começar pelos Naturais (o mesmo se repete no 7º e 8º
anos, mas em contexto e significado ampliado). Na realidade, ao levar-se em
conta livros didáticos e os PCNs dos 3º e 4º Ciclos, Clemente e Gonçalves
(2014) apontam como conteúdo do 6º ano, pela ordem: 1. Os sistemas de numeração
e suas histórias, contextos e demandas de seus tempos e espaços; 2. Os números
Naturais, seus contextos, significados, operações básicas e suas ideias; e 3.
Ampliando o conhecimento sobre os números Naturais N.
Ora, sabemos que o ato de contar determinou o conjunto dos Naturais e que
também desenvolveu no homem a capacidade de se registrar por escrito do que se
conta, com efeitos na linguagem, pois cada número recebe nome, com significados
semânticos e de sintaxe. Portanto, temos nessa situação hipotética pelo menos
três saberes envolvidos: a Matemática propriamente dita, por meio da
Aritmética; a História e a Língua Portuguesa.
Com o apoio do corpo pedagógico da escola, pode-se construir “o sistema
de dois níveis de objetivos múltiplos”, conforme visto em Japiassu (1976),
reunindo os professores dessas três disciplinas. A partir de uma coordenação
discute-se o planejamento interdisciplinar que irá gerar os planos de aula
específicos de cada especialista. Isso é perfeitamente possível, posto que é previsto
nos PCNs, conforme destacam Clemente e Gonçalves (2014) ao citá-los:
É fundamental ressaltar que, ao serem reinterpretados
(nos estados e municípios) e localmente (nas unidades escolares), os conteúdos,
além de incorpora elementos específicos de cada realidade, serão organizados de
forma articulada e integrada ao projeto educacional de cada escola (CLEMENTE,
C.; GONÇALVES, J. B. P. 2014, p. 61).
Para dar vazão ao nosso exemplo, vamos apresentar um pequeno resumo do
que poderia ser considerado na construção dos conteúdos multidisciplinares,
reduzidos aqui a três disciplinas apenas, mas que pode ser ampliado para
outras, é lógico.
Subsídios de conteúdo de História
(Antropologia)
Vestígios arqueológicos apontam a região onde hoje se encontra o Iraque,
como sendo possivelmente o berço da escrita. “A mais antiga escrita autêntica
do mundo foi encontrada na Mesopotâmia em tabuinhas de barro do período chamado
de Uruk (quarto milenário A.C.). Compreende 1.500 caracteres” (BIRKET-SMITH K,
1962, p.368). Entretanto, ressalta o autor que “de todos os sistemas de escrita
da Antiguidade nenhum entretanto tem significado tão grande quanto como o
sistema fenício”, sendo os vestígios mais antigos encontrados datados do século
XIII a.C. Ora, se um povo tem um alfabeto e representação para números, há
condições de se desenvolver certa ciência, que dará superioridade a este povo
em relação a outros, e os fenícios são apenas uma prova desta afirmação e que
pode ser repetida em relação a outras civilizações que os sucederam.
Duas condições preliminares devem ser preenchidas
antes de poder ver a luz do dia uma ciência verdadeira. Uma escrita deve ser de
começo criada, sem a qual toda compreensão entre pessoas separadas por grandes
distâncias no tempo e no espaço e desde o início excluída. Depois requer-se
certo conhecimento da medida e do número; torna ele possível a concepção duma
conformidade às leis da existência.
Toda escrita não é outra coisa, em definitivo, senão
uma ajuda da memória. Os caracteres suscitam imagens mnemotécnicas dum tipo ou
doutro, pelo fato de estarem associados com a representação de certos sons. O
que quer dizer que há a possibilidade de tomar duas direções: a da associação
por contato ou da associação por analogia e as duas vias, de fato, têm sido
seguidas. A primeira utilizada ainda por aquele que dá um nó no seu lenço para
se lembrar de que deve comprar um pedaço de queijo para o jantar. (...) A outra
via que se encontra muitas vezes diante da formação duma escrita é a das
imagens ((BIRKET-SMITH K. 1962, p.366-367).
Nos séculos seguintes, a arte de contar e de registrar o que se contava
de acordo com a evolução dos povos se desenvolve de várias formas. Por volta do
sexto século antes de Cristo, floresceu na península itálica, na região
denominada de Lácio, a Civilização Romana. Este povo, que tinha por língua o
latim, essencialmente prático, desenvolveu um sistema de contagem e notação
numérica baseado no exercício de contar animais, sobremodo ovelhas, abandonando
o que era usado nos tempos homéricos (séc. IX-VIII a.C.).
Subsídios de conteúdo de
Matemática
À maneira grega, relata Ifrah (2010), os romanos também passaram a usar
letras do alfabeto para representar os números: 1, I; 5, V; 50, L; 100, C; 500,
D; 1000, M. Esse sistema tinha boa utilidade para a ordenação dos numerais,
entretanto se demonstrava praticamente inútil para as operações aritméticas.
“Assim, um povo que atingiu em poucos séculos um elevado nível técnico
conservou, curiosamente, durante toda a sua existência um sistema inutilmente
complicado, não operatório, e comportando um arcaísmo de pensamento
característico” (IFRAH, G. 2010, p.186).
Segundo Bôscolo e Castrucci (1971), o sistema de números romanos firma-se
a partir de quatro letras fundamentais: 1; X = 10; C = 100; M = 1000 e três
intermediárias: V = 5; L = 50; D = 500. Importantíssimo: eles não usavam
símbolo algum para o zero. Os mesmos autores, apresentam quatro princípios
aritméticos envolvendo o sistema romano: adição, repetição, subtração e
multiplicação.
Adição: o valor de uma letra colocada à direita de outra de valor
igual ou maior, é adicionado ao valor desta. XXIII = X + X + I + I + I = 23. Repetição:
somente são repetidas as letras fundamentais e no máximo três vezes. VIII = 8;
CXXX = 130; DCCC = 800; MMM = 3000. Subtração: o valor de uma letra
colocada à esquerda de outra de valor maior, é subtraído do valor desta.
Somente se emprega a justaposição subtrativa quando a aditiva não for mais
possível. IV = V – I = 4; XC = C – X = 90. Portanto, não se escreve LXXXX, mas
sim XC. Nota-se ainda que um número encimado por um traço horizontal representa
milhares, por dois traços representa milhões etc. Apresentava-se dessa forma,
um sistema composto pelos Números Naturais, nascidos unicamente da nossa
necessidade de contar objetos de certos conjuntos, como ovelhas, sacas de
cereais, moedas etc. Inferimos pois, que, caso o conceito de Números Naturais
existisse à época, ele seria, possivelmente, assim representado, N = {I, II, III, IV,
V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII...}.
De acordo com Ifrah, (2011), essa forma de notação numérica sobreviveu à
decadência e queda do Império Romano e avançou pela Idade Média, quando foi
substituído, na Europa, pelos algarismos hindo-arábicos, que possibilitavam a
realização de cálculo num sistema também decimal. É importante frisar a
presença dos árabes na Península Ibérica por quase setecentos anos, (711 d.C. –
1492 d.C.).
“Uma
vez conhecida pelos árabes, a aritmética hindu – graças as múltiplas relações
desses povos – ganhou também rapidamente todos os ‘países irmãos’ do Magreb e
da Espanha. Até então, os calculadores árabes ocidentais haviam se servido de
métodos arcaicos. Mas a partir da metade do século IX eles também se tornaram
especialistas em ‘cálculo na areia’ e passaram a manejar números muito mais
elevados com mais facilidade ainda, na medida que os algarismos e métodos de
origem hindu facilitavam a prática de todas as operações aritméticas” (IFRAH,
G. 2011, p.312).
Ifrah (2011)
comenta o duro caminho enfrentado pela nova forma de cálculo com os novos
caracteres (chamada de algoritmo), na Europa. “Foi preciso esperar durante
séculos até que o triunfo do ‘algoritmo’, como era então denominado o cálculo
escrito, fosse finalmente total e definitivo“ (IFRAH, G. 2011, p. 304). Vencida
essa batalha, inclusive enfrentado a resistência Igreja Católica durante o
período da Inquisição, conforme informa Ifrah (2011), que via algo de “mágico”
no novo método de cálculo, chegamos aos nossos dias adotando a notação árabe
para os algarismos e a denominação romana para designá-los. Na realidade, por
motivos práticos, apenas trocamos uma notação por outra, mas a ideia
fundamental de contar e operar com quantidades de um conjunto ainda se faz a
mesma dos pastores que viveram na região do Lácio há quase três mil anos e com
uma grande novidade que revolucionou a matemática ocidental, que é a
representação do nada por meio do zero. Dessa forma, hoje e em qualquer parte
do mundo, a linguagem matemática está praticamente unificada, mesmo que se
ignore o árduo trabalho para se chegar ao que consideramos tão simples, o conjunto
dos Números Naturais, N = {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9...}.
Subsídios de conteúdo da Língua
Portuguesa
Todas essas transformações na matemática tiveram paralelos na língua
portuguesa, filha do latim. Conforme informa Furlan (2006) desde o século III,
portanto antes da queda do Império Romano do Ocidente, nota-se transformações
no latim vulgar falado na Península Ibérica, especialmente em Portugal.
Entretanto, os primeiros documentos que contamos e que apontam uma escrita
portuguesa, datam do século XIII, “a Notícia
do Torto 1214-1216), proveniente deste mesmo mosteiro [Vairão], e o Testamento de Dom Afonso II, rei de
Portugal, datado de 1214” (FURLAN, 2006, p. 312-313). Esses documentos utilizam em sua lavra as
notações numéricas em algarismos romanos, ao passo que o latim não é mais usado
em sua forma clássica, inclusive com o aparecimento do uso de artigos, coisa
que definitivamente não existia na língua do Lácio. Mesmo ao se considerar o
longo período da invasão árabe na Península, pouco foram suas contribuições ao
nosso vernáculo. A grande transformação desse povo aos portugueses está na
Matemática e, portanto, não na Língua Portuguesa propriamente dita. Furlan
(2006) se faz a pergunta: “quantos vocábulos do léxico português procedem do
latino?” – E responde:
Antenor
Nascentes fez cálculo que, embora nada recente, conserva seu valor e
significado. Baseia-se no Novo dicionário da língua portuguesa de Cândido de
Figueiredo (Lisboa, 3 ed, [1920]), então o mais volumoso, de 140.000 vocábulos.
Excluídos os arcaísmos, provincianismos e vocábulos só usuais nas ex-colônias
portuguesas (10.000), os restantes 100.000 apresentam o seguinte quadro de
origem: 80.703, do latim; 16.079 do grego antigo; por via latina, o que perfaz
96,782%; apenas 3,218% são de outras línguas, produto de empréstimo resultantes
de múltipla natureza, (políticos, sociais, tecnológicos), tomados de culturas e
línguas entre as quais sobressaem, pelo volume de vocábulos: árabe (609).
Francês (657), espanhol (400), italiano (383) e germânico (103) (FURLAN, O. A.
2006, p. 330- 331).
Dentre as
classes gramaticais do português, os gramáticos da Língua Portuguesa incluem os
numerais, que são apresentados da seguinte forma por Almeida (2011) em sua Gramática Latina:
Na proposta de aula que apresentaremos a seguir, prevê-se o uso de
material bem simples e barato, podendo ser palitos de sorvete, palito de dentes
ou até mesmo gravetos cortados de tamanho semelhantes. Caso a escola não conte
com um Laboratório de Ensino de Matemática (LEM), esse material tão simplório,
pode ser o início da montagem desse novo espaço de ensino e aprendizagem no
ambiente escolar.
“O laboratório de Matemática pode ser visto como um
espaço de construção do conhecimento, tanto coletivo como individual. É nesse ambiente que os recursos didáticos
pedagógicos e as propostas didáticas tomam vida própria, contribuindo para o
ensino da Matemática. Esse espaço pode surgir naturalmente, aos poucos, com a
construção de materiais manuseáveis durante as aulas de Matemática; ele não
precisa ser um local pronto e acabado” (CLEMENTE, C.; GONÇALVES, J. B. 2014, p.
129).
No próximo item deste trabalho, apresentaremos uma sugestão de prática de
Matemática em sala de aula, em escola pública ou privada,
Plano de Aula - 6º ano
Números naturais a partir dos numerais romanos – alguns
palitos
I - Dados da Aula: o que o
aluno poderá aprender com esta aula (objetivos): definir número natural;
reconhecer os numerais romanos até XX; criar um sistema de correspondência
biunívoca entre conjuntos; conhecer a história dos algarismos romanos e dos
números naturais; verificar o uso em nossos dias desses algarismos; a
inexistência do zero para os romanos.
II - Duração das atividades: 2 horas – Conhecimentos prévios: número e sua notação hindo-arábica;
identificação de conjunto de objetos.
III - Recursos da aula: palitos de sorvete (ou similares);
quadro de giz.
IV – Estratégia: iniciar a
aula conversando com os alunos sobre a existência de civilizações anteriores
que sentiram a necessidade de contar rebanhos e mercadorias para fins de troca
(escambo) e venda. Numa linha do tempo identificar a civilização romana entre
700 a.C. e 476 d.C. Mostrar no mapa a localização deste império, tendo como
referência a Itália moderna. Reforçar a presença dos romanos no território que
conhecemos hoje como Portugal. Discorrer sobre a formação das línguas modernas,
entre elas o italiano, o francês, o espanhol e o português a partir do latim,
língua falada pelos romanos daquele período histórico. A princípio pastores, os
romanos desenvolveram seu sistema numérico a partir da necessidade de contar
ovelhas, gado e cabras.
O professor deve formar grupos com números variados de alunos (cada grupo
contendo 6 ou mais); cada grupo receberá 30 palitos de sorvete; o grupo A, por
exemplo, deverá “contar” o número de alunos no grupo B e separar os palitos de
acordo com o número de componentes contados; o mesmo deve se dar do grupo B em
relação ao grupo A, ou outro qualquer; depois de contados, os alunos devem
informar ao professor o número de palitos encontrados; o professor deve
desenhar os conjuntos no quadro e demonstrar o conceito de correspondência
biunívoca entre os conjuntos; pedir para os grupos representarem por um V, cada
grupo de cinco elementos contados e também contar o excedente; pedir para
guardar o resultado para uso posterior; o professor deverá explicar que contar
os elementos de um conjunto nos dá a noção dos Números Naturais. Cada conjunto
terá seu número natural determinando-lhe a quantidade de uma coleção; assim
procediam os romanos para a contagem até cinco, ou seja, para os três primeiros
elementos, a contagem é simples, com um palito correspondendo a cada elemento
contado; como foi adotado representar cinco elementos com a letra V, o palito
colocado antes do V, por subtração, significa o quanto falta para se chegar ao
cinco. O mesmo numeral, portanto, pode ser representado: a palavra três,
numeral da linguagem corrente; 3, numeral hindo-arábico; III, numeral romano.
Esta dinâmica tem sua continuidade até se chegar ao 20.
V - Exercícios – o professor deve apresentar alguns numerais
hindo-arábicos no quadro e pedir para os grupos representá-los com os palitos
na forma de algarismos romanos. Repetir o mesmo exercício, com números
variados, no caderno, individualmente. O professor deve ressaltar a ausência da
ideia representativa (numeral) do zero, a principal razão pela qual adotamos,
hoje, os numerais hindo-arábicos, que contém o zero, fato que nos facilitam as
operações matemáticas. O professor deve mostrar alguns exemplos do uso que
ainda fazemos dos algarismos romanos, em nossas leis. A Constituição de 1988 é
um ótimo exemplo, devido à herança do Direito Romano; divisão dos livros em
capítulos; separação de tópicos em listas e nomes de reis, imperadores e papas.
VI - Jogos: O professor pode desenvolver jogos em sala de aula, ao
dividir os alunos em equipes que se alternarão em perguntas e respostas, na
representação, por meio dos palitos, dos numerais romanos. O processo inverso
também pode ser desenvolvido.
VII Avaliação: em grupo -
alguns aspectos que devem ser considerados: capacidade de trabalhar em equipe;
habilidade para buscar soluções para os problemas identificados;
disponibilidade para auxiliar colegas em situações de dúvidas. Pesquisa
individual: pesquisar para a próxima aula como os romanos contavam até 1
milhão. Questão: O sistema romano possibilitava fazer as operações matemáticas
tal qual realizamos com os numerais hindo-arábicos? Na prova escrita: saber
identificar os numerais romanos; saber estabelecer correspondência biunívoca
entre conjuntos; saber o que é um número natural.
VIII - Interdisciplinaridade – Pelo exposto, esta aula ficaria
muito mais rica caso se trabalhasse noutras disciplinas tópicos correlatos:
História – linha do tempo; aspectos antropológicos do ato de contar elementos
de um conjunto, o Império Romano e a ocupação da Península Ibérica, influências
na linguagem; ocupação árabe, Portugal; Língua Portuguesa –Numerais: a Língua
Latina como base para a formação da Língua Portuguesa.
CONCLUSÃO
Neste artigo, partimos de uma provocação, a qual na realidade é uma
constatação empírica, de que há uma aceitação social para o desconhecimento
matemático e um certo “repúdio” social por seus sectários. Porém, constata-se
que neste tempo de endeusamento das novas tecnologias, esse conhecimento da
Matemática é fundamental para o desenvolvimento das gerações futuras. Isso,
talvez, ilustre os lamentos de um dos pensadores mais eruditos do Renascimento,
época de descobertas científicas, muitas delas relacionadas à Matemática. Por
volta de 1580, conta-nos Ifrah (2010), Michel de Montaigne, restrito ao
conhecimento filosófico, queixava-se de que não sabia calcular. “Ora, não sei
calcular nem por meio de fichas nem por escrito” (Montaigne, apud IFRAH, G.
2010, p. 295).
Apoiados pelos números da pesquisa Pisa, constatamos que realmente há uma
dificuldade muito grande das pessoas, no Brasil e em muitos outros países, no
que se refere à aprendizagem de Matemática. O MEC reconhece esses números e
induz que para melhorá-los há de se, igualmente, melhorar a qualidade da
formação de professores (material didático também). A partir daí formulamos
nosso problema: verificar se já há as bases teóricas para essa melhoria
almejada pelo MEC, e é lógico, dentro da perspectiva da Terceira Revolução
Industrial. Sim, constatamos que é vasta essa base teórica, a qual pode se
apoiar numa antiga ideia de interdisciplinaridade, presente na discussão
didática no Brasil há pelo mens 40 anos. Descobrimos, no entanto, que embora o
trabalho interdisciplinar encontre abrigo nos PCNs, ele sofre ainda
incompreensões na escola, porque parte de uma transformação das abordagens
didáticas dos professores, que precisam passar da simples prática de
especialistas para a prática generalistas.
Idealizamos depois um exemplo prático, em que esse generalismo se fez em
trabalho interdisciplinar com Números Naturais romanos e hindo-arábicos,
envolvendo três disciplinas, Matemática, Língua Portuguesa e História, com
enfoque antropológico. Verificamos que após o desenvolvimento dos subsídios
teóricos, era possível sim, rumarmos para a interdisciplinaridade requerida.
A escolha do ato de contar não foi aleatória no desenvolvimento deste
trabalho. Escolhemos o ato de contar, porque ele justifica a própria Matemática
e também porque ele nos dá a perfeita noção da importância da prática interdisciplinar,
ao reunir em si o contexto global do desenvolvimento da linguagem humana. Ou
seja, a Matemática não como uma disciplina alienígena, que caiu do céu, ou como
dizem nossos alunos “ um mistério que apareceu do nada”, mas como disciplina
que nasceu em resposta às necessidades humanas, dialogando com outros
conhecimentos e com eles avançando.
Proposital também foi a escolha de simples palitos para o desenvolvimento
da aula proposta. Não importando a abordagem escolar – Psicanálise,
Behaviorismo, Gestalt, Humanismo, como explica Campos et al. (2013) – a
Psicologia observa as mesmas fases do desenvolvimento da criança, em que ela
passa a ter a noção do ‘estar no mundo’. É evidente que nessas fases, se
aprimora o ‘sentir o mundo’ por meio dos sentidos, sobremodo e pelo tato. Ao
fornecer palitos para o desenvolvimento da prática aritmética das crianças,
nada mais fazemos do que dar a oportunidade a ela desse contato concreto com o
número, proporcionando o mesmo sentimento, por certo, experimentado pelos pastorzinhos
de cabras em épocas que já se perdem na noite do tempo. Nos jogos propostos,
isso fica mais evidente, pois essa lúdica sensação do “número tátil” jamais
poderia ser alcançada em intensidade, caso optássemos pelo moderno mundo
virtual dos jogos de computador.
Portanto, acreditamos ter
chegado ao escopo pretendido, demonstrar que a formação de professores está bem
servida de métodos didáticos e que a interdisciplinaridade se mostra como bom
caminho para a melhoria do ensino, não somente da Matemática, mas de todas as
disciplinas, para isso basta ter boa-vontade aplicar os pressupostos dos PCNs.
Educar para a vida exige-nos uma visão mais ampla do que as restritas nas
especialidades, temos que ser generalistas, caso queiramos de verdade uma Educação
calcada nos princípios de uma civilização genuinamente humana, mesmo num mundo
automatizado, em que imperam a máquina e a alienação do homem.
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- Acesso em: 10 de maio de 2017 – 18h45.
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