No Jardim do Éden, colhíamos alho - Conto

José Fernando Nandé

Tenho a pior memória do mundo, aquela que nada esquece. Absolutamente nada. Lembro-me dos primeiros brinquedos feitos por minhas mãos infantis, alguns de lata, outros de madeira, ou ainda de qualquer quinquilharia que encontrava. Em criança, o brinquedo não está somente no objeto, mas no que imaginamos ser o objeto. Uma lata de óleo arrastada por um cordão pode virar um trem, ou ainda qualquer coisa que possa carregar carga. Uma estrada desenhada no chão por uma enxada vira uma rodovia inteira, ligando cidades imaginárias.
Dessa época que evoco, na primeira infância, brincar por tempo mínimo era-me a fuga da realidade que já me obrigava ao trabalho. Lembro-me que num sábado frio, tive que ir até um sítio colher alho, a troco de alguns centavos. O solo estava úmido e gelado. Em poucos minutos envolvido na tarefa, junto com outros maltrapilhos, a dor nas costas se fazia insuportável, já que trabalhávamos agachados e com o corpo voltado para frente.
Havíamos começado cedinho e só fizemos uma pausa para o almoço. O problema é que não tinha almoço, poucos trabalhadores haviam levado algo para distrair o estômago.  Um dos peões, andarilho, bem mais velho do que os outros miseráveis que no eito penavam, cedeu-me um naco de pão e ensinou-me a preparar uma massa de alho para recheio. Um horror para um guri de 10 anos que sonhava com doces, mas suficiente para matar a fome, infinitamente ampliada pela dura jornada naquela lavoura que até as formigas evitavam.
Creio que o nome daquele sujeito, o qual me dera o que comer, era Adão – assim ele dizia ser seu nome e assim acredito. Adão vivia neste mundo seguindo, letra por letra, o castigo divino: “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás”. Além disso, ouvi comentários de que ele era ex-presidiário, pois no seu destino de Adão, havia matado a mulher e seu compadre, que andavam dividindo a maçã oferecida pela serpente da traição: “E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”.
Enquanto eu quase chorava comendo aquele pedaço de pão amanhecido com alho e água, Adão matutava em voz alta:
– Pensei ter tudo na vida, mas tudo era engano, nem meus filhos sei se são meus. Perdi o nada que pensava ter. Não tenho mais nada, além dessas pernas que me levam longe… Fujo de mim mesmo…
Olhei para o andarilho e vi que ele falava e falava para algum ser imaginário ao meu lado. Confesso ter sentido medo. Os olhos vermelhos do desgraçado davam-me medo. Mas logo isso passou, quando, com certa ternura na voz, ele me aconselhou:
– Escuta menino – disse-me Adão, segurando a Bíblia que tirou do seu embornal – e isso é um conselho, antes que você conheça mulher e tenha filhos, leia este livro, mas não a leia como um crente; leia o Gênesis como se estivesse ouvindo um sábio. Infelizmente, só fiquei sabendo desse livro na prisão e se soubesse dele antes, não teria feito tanta besteira na vida.
Ao dizer-me isso, o andarilho abriu o livro de páginas sujas e quase soltas e leu em voz alta para que todos escutassem:
– “E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela.”
Trabalhamos até o escurecer. Recebemos nossos trocados e foi a última vez que vi o andarilho. Alguns dias depois fiquei sabendo que, naquele mesmo sábado, à noite, ele fora atropelado e morto na rodovia do Café, depois de ter tomado um litro de pinga numa vendinha de beira de estrada. Adão cumprira seu destino, tornara ao pó sem mais esperanças no Paraíso que a si imaginara.

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