A estupidez como modelo social da Modernidade Líquida
José Fernando Nandé
Dizem que a coisa começou lá com os gregos e ganhou força sobremodo com os romanos: nosso gosto por tudo quanto possa ser considerado dramático. A dureza da realidade nos força, inclusive para alguma saúde mental, a sonhar de olhos abertos.
Por herança, além das línguas românticas (Português, Francês, Italiano, etc), ganhamos, em nosso sangue latino, a paixão: esta capacidade de sofrer, que nada mais é do que tocar a vida adiante sem muita lucidez e afastados da razão. Por isso, amamos a tragédia e a comédia. Por isso, endeusamos nossos atores, artistas e perdemos tempo em frente à TV vendo novelas, programas sofríveis de humor e filmes.
Porém, nosso pão e circo têm lá suas limitações. O pão sempre foi pouco. No circo eletrônico onírico-virtual, os autores debatem-se para descobrir uma nova fórmula em suas ficções esgotadíssimas em qualidade e criatividade, que determinam a constante queda de audiência dos novelões, repetidos em forma, esquetes e tipos.
Nessa crise de criatividade ficcional, o que nos sobra é apelar para a tragédia ou comédia real e, se possível, dramas particulares eivados de irracionalidade e estupidez, como se isso nunca tivesse feito parte da condição humana. A criança arremessada pela janela por um casal, ou a moça sequestrada e morta pelo namorado, ou o menino morto em alguma praia europeia, ou um golfinho maltratado e morto por turistas, ou uma advogada arremessada pela janela por um animal identificado como marido ou namorado, ou uma vereadora morta que vira heroína do nada, são sequências de uma mesma história de horror televisiva. É o horror como notícia, é o horror para nossa distração.
Nessa tragédia real, colocamos entre os atributos da notícia a capacidade dela tornar-se um drama desenvolvido em capítulos desconexos, porque a realidade não nos parece conexa. A paixão levada do privado para o público, do particular para o coletivo.
Mas dentro da tragédia em escala industrial, manda o manual da audiência, misturarmos algum riso ao trágico. Nessa nova comédia real, votamos em candidatos engraçados e estúpidos para assim garantirmos esse riso extra. Rimos das tolices dos programas especializados na desgraça alheia, que julgamos engraçada. Rimos do humor duvidoso e pouco inteligente desses programas da piada industrializada. Rimos de nossa própria condição de massa manipulável.
Nada disso é novo, como disse. Porém, o rir e o chorar alcançaram a escala industrial dentro dessa indústria que busca nos distrair de nossa condição de condenados dentro de uma sociedade que perdeu o juízo. Ou dentro de uma civilização que, a rigor, nunca alcançamos.
Deriva dessas misérias da pós-modernidade, ou Modernidade Líquida, a necessidade de ter assunto por meio das redes sociais; as novas fórmulas para espalhar o boato, a notícia nos modernos meios eletrônicos, em escala, velocidade e alcance, antes inimagináveis. Na verdade, estamos dando nova roupa ao velho fuxico de cerca de nossos avós, quando tudo era contado de ouvido para ouvido.
Temos dois mil anos de desenvolvimento da técnica que culminou na Sociedade da Informação, rápida, global e deficiente ao informar. Dois milênios usando todo nosso gênio para que lembremos em instantes que, sob os efeitos das paixões, não somos diferentes dos nossos semelhantes que habitavam as cavernas: estúpidos e desgraçadamente animais, que riem e choram por distração, conscientes que somos do nosso próprio fim.
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