Artigo - Teorema Fundamental da Aritmética e fatores primos


A diferença entre método e propriedade - o Teorema Fundamental da Aritmética e a necessária ordenação dos fatores primos na decomposição de números compostos

José Fernando da Silva*

RESUMO
Este artigo discute a diferença entre método e propriedade na Matemática e aborda seus desdobramentos no algoritmo da fatoração dos números compostos, observando-se o Teorema Fundamental da Aritmética. A partir de análise do problema clássico da obtenção dos múltiplos de um número qualquer, demonstra-se ser condição sine qua non, para se obter os resultados desejados, o uso do método padrão de fatoração em números primos.
Palavras-chave: Teoria dos Números, método, algoritmo, propriedade, aritmética, Teorema Fundamental da Matemática, números primos, fatoração, múltiplos de um número, didática.

I – Da necessidade de se distinguir método de propriedade
                        
Na decomposição dos números em seus fatores primos, bem como na obtenção do Mínimo Múltiplo Comum (MMC) e do Máximo Divisor Comum (MDC), há uma confusão que pode ser feita ao se mesclarem os conceitos de método e propriedade de certas operações inerentes aos números primos obtidos. A questão é: o método de decomposição de um número composto, por meio de algoritmo específico, admite ordem qualquer dos fatores primos? Demonstraremos a posteriori que não, posto que a propriedade particular não é o método em si.
                          
                       Método – conjunto de ferramentas lógicas e operacionais – normalmente na forma de algoritmos – usadas para se chegar a um resultado.
                     
                    Propriedade – aquilo que é próprio ou particular de elementos singulares, conjuntos ou sistemas.
                        
               Para maior clareza, já que usamos o termo, algoritmo é um conjunto de procedimentos de causas e efeitos executáveis que objetivam solução para algum tipo de problema. Em Matemática e ciências associadas, o algoritmo deve ser, no mínimo, preciso e não ambíguo.
                        Ao se fazer essa distinção entre método e propriedade, esse trabalho procura esclarecer e demonstrar que há grande diferença entre o método de fatoração de números compostos, ordenando no algoritmo os fatores primos do menor para o maior e a propriedade dos fatores de se apresentarem em qualquer ordem, como é natural dos produtos entre números. 

II – Teorema Fundamental da Aritmética
                        
             A fatoração de um número composto segue rigorosamente o Teorema Fundamental da Aritmética (ou, por que não, de toda Matemática), o qual aparece praticamente demonstrado por Euclides (300 a.C), livro XII de “Os Elementos”. Não obstante, há de se reconhecer o matemático e astrônomo Carl F. Gauss (1777-1855) como o primeiro a propor claramente tal lei e demonstrá-la de forma definitiva.
            Infelizmente, nos primeiros livros didáticos publicados no Brasil sobre Aritmética, este teorema aparece enunciado, porém não identificado como tal e nem mesmo é demonstrado. Há de se supor, que tal enunciado foi traduzido de alguma obra francesa ou até mesmo do Grego antigo, ao se introduzirem os primeiros estudos em nossas escolas de Números Primos, Crivo de Eratóstenes (275 a.C.) e critérios de divisibilidade para os Números Naturais. Assim, no meio dessas definições, nos antigos livros se coloca esse importante teorema de forma apagada e ordinária, sem maiores destaques ou explicações (o que se perpetua em boa parte dos livros didáticos para o Ensino Fundamental):

                        “Todo número não primo pode ser decomposto num produto de fatores primos”.¹
                        Em obras modernas, editadas no país, em especial naquelas que tratam da Teoria dos Números, o enunciado do Teorema se faz claro:

                        “Todo inteiro a maior ou igual a 2 pode ser escrito como produto de números primos. Esta decomposição é única, exceto pela ordem dos fatores primos”.²
                        Ou ainda:
                        “Todos os números inteiros positivos, maiores do que 1, podem ser decompostos num produto de números primos, sendo esta decomposição única a menos de permutações dos fatores”.
                        
                                    Ou seja, deduz-se que ao se decompor um número composto, podemos até mesmo variar a ordem dos primos em sua decomposição, mas obteremos apenas uma decomposição que lhe é atribuída como única, justamente a que respeita a ordem dos fatores primos do menor para o maior, com de ordinário se faz no algoritmo próprio para essa decomposição. Exemplo: vamos decompor em fatores primos o número 540.
           

                        i) Decomposição I, seguindo a ordem do menor primo para o maior:
                                   540 | 2
                                   270 | 2
                                   135 | 3
                                   045 | 3
                                   015 | 3
                                   005 | 5
                                   001
                        Assim o produto dos fatores encontrados será:
                                   P(I) = 2².3³.5 = 540
                        E o conjunto da decomposição será formado por:
                                   D(I) = {270, 135, 45, 15, 5, 1}
                        ii) Decomposição II, iniciando-se pelo primo 3, que, por si só, já viola a aplicação das regras de divisibilidade, em que temos que sempre dividir um número par por 2, antes de tentarmos dividi-lo por 3:
                                   540 | 3
                                   180 | 3
                                   060 | 3
                                   020 | 2
                                   010 | 2
                                   005 | 5
                                   001
                        O produto dos fatores encontrados será:
                                   P(II) = 3³.2².5 = 540
                        O conjunto da decomposição:
                                   D(II) = {180, 60, 20, 10, 5, 1}
                        iii) Decomposição III, começando pelo maior fator, 5:
                                   540 | 5
                                   108 | 3
                                   036 | 3
                                   012 | 3
                                   004 | 2
                                   002 | 2
                                   001
                        O produto dos fatores será:
                                   P(III) = 5.3³.2² = 540.
                        O conjunto da decomposição
                                   D(III) = {108, 36, 12, 4, 2, 1}
                        Ora, pelo visto até o momento, podemos inferir a primeira propriedade da decomposição de um número composto em fatores primos: os fatores que compõem um número composto são o resultado do produto entre eles, não importando a ordem em que apareçam, pois são elementos de uma multiplicação.
                                   P(I) = P(II) = (PIII)
                        Entretanto,
                        Ao se variar a ordem dos fatores, são encontrados números diferentes para cada decomposição. D(I) ≠ D(II) ≠ D(III).

III – Considerações sobre o método utilizado e propriedade obtida
                        
                          Ora, se pela propriedade, a ordem dos fatores primos não altera o resultado do produto que, em suma, é o próprio número decomposto, por que a Aritmética recomenda no método, como regra, sempre começar, ab ovo, a decomposição pelo menor número primo possível?
                        1) Em respeito ao Teorema Fundamental da Aritmética;
                        2) Em respeito à lógica, a essência da Matemática; pois os critérios de divisibilidade, fundamentais para se resolver este tipo de problema, começam justamente pelo menor número primo, o 2;
                        3) Os números pares e os divisíveis até o primo 11 são relativamente fáceis de serem resolvidos por qualquer ordem de fatoração. Todavia, para números ímpares, não divisíveis por nenhum dos primos até o 11 e compostos por mais de três algarismos, o método a ser adotado passará necessariamente pela tentativa e erro, extremamente demorado e pouco eficaz. A título de exemplos, pode-se tentar decompor os números 2717, 78793, 50141 e ou outros similares que, pela dificuldade de decomposição, servem à criptografia ou chaveamentos de senhas;
                        4) Porque o algoritmo próprio da fatoração em números primos assim o exige como regra e não como exceção;
                        5) A ordem do menor primo para o maior primo na decomposição de números é usada como regra na resolução de problemas clássicos da fatoração aritmética, como veremos a seguir.

IV – Do método de fatoração na resolução de problemas clássicos
                        
                         Entre tantos exemplos de problemas envolvendo fatoração em números primos, citaremos o de “achar a quantidade de divisores de um número” e o de “quais seriam eles”. Usemos para efeito de demonstração o número 540, que já está em estudo.
                        Perguntas: Quantos divisores este número possui e quais são eles?
                        Sabemos que a decomposição do número 540, pela ordem do menor primo para o maior é: 2³.3².5
                        Para se saber o número de divisores basta que se multipliquem os expoentes da decomposição somados a mais 1. Assim:
                                   (3+1).(2+1).(1+1) = 4.3.2 = 24
                        Ou seja, o número 540 tem 24 divisores.
                        Quais são eles?
                        A partir da decomposição de 540 em fatores primos, utilizamos o seguinte algoritmo, pela ordem, em multiplicações sucessivas:
                                   2
                                   2 -->  1           2          4
                                   3-->   3           6          12
                                   3-->   9           18       36
                                   3-->  27          54       108
                                   5-->   5           10       20
                                               15       30       60
                                               45       90       180
                                               135     270     540
                        S = {1, 2, 3, 4, 5, 6, 9, 10, 12, 15, 18, 20, 27, 30, 36, 45, 54, 60, 90, 108, 135, 180, 270, 540}
                       
V – Reductio ad absurdum
                        
                   Portanto, ao se observarem os problemas anteriores, em que escolhemos o número 540 como exemplo, torna-se óbvio que, acaso se aceite a propriedade como método, no caso da fatoração de quaisquer números, não se observando a ordem que leva do menor fator primo ao maior, como se exige no algoritmo próprio para tal, teríamos que criar algoritmos novos a cada operação. Isso se for possível se chegar a algum resultado aceitável. Estaríamos assim dando à Matemática os caracteres que ela abomina em métodos resolutivos por meio de algoritmos: a ambiguidade e a imprecisão.
                       
VI – Método é uma coisa e propriedade é outra coisa
                  
                  Em conclusão a este trabalho, consideramos alcançados os objetivos propostos com a clara demonstração da diferença entre método e propriedade, especialmente na decomposição em fatores primos de números compostos.
                       Dessa maneira, devemos ter especial cuidado na abordagem desses assuntos em sala de aula. Hoje, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ministério da Educação prevê o trabalho desses assuntos de forma progressiva com alunos dos sextos e sétimos anos. A boa didática manda apresentar novos conteúdos somente depois da assimilação do conteúdo anterior.
                       No caso específico da fatoração em números primos é condição sine qua non para seu bom entendimento a assimilação do método e respectivo algoritmo e somente depois deve-se apresentar suas propriedades, tidas como isso apenas, propriedade e não método a ser usado per fas et per nefas.
                        Por fim, embora não figurando como objetivo deste trabalho, notou-se o descompasso dos livros didáticos do Ensino Fundamental com a moderna Teoria dos Números, sobremodo na ausência de trabalho mais bem elaborado no trato com o nosso primeiro teorema. Essa lacuna deve ser corrigida o mais breve possível, posto a importância do assunto, sobremodo na criptografia e outras aplicações na Informática.
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*José Fernando da Silva (Nandé) é bacharel em Comunicação Social, graduado em Matemática e pós-graduado em Economia do Trabalho (UFPR) e Metodologia do Ensino Superior.

Obras consultadas

                   ¹TRAJANO, Antônio; Aritmética Progressiva – Rio de Janeiro, RJ: 91 ed. Editora Paulo de Azevedo Ltda, 1963.
                  ²PARRON, Luciene G. Cálculo Diferencial e Integral, Kit de sobrevivência – UEM, edição eletrônica. Acesso 14/03/2020. http://www.dma.uem.br/kit/arquivos/arquivos_pdf/teoremafundamentalaritmetica.pdf
                    GONÇALVES, J. B; Clemente C. Metodologia do ensino de matemática. Batatais, SP: Claretiano, 2014.
          IFRAH, G. Os números: história de uma grande invenção. 11 ed. São Paulo: Globo, 2010

          SZPIRO G. A vida secreta dos números: 50 deliciosas crônicas sobre como trabalham e pensam os matemáticos. 2 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2011.

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