SUBSÍDIOS TEÓRICOS PARA A ANÁLISE DA TRANSIÇÃO DOS NUMERAIS DO LATIM PARA AS LÍNGUAS PORTUGUESA E ESPANHOLA NA ROMANIZAÇÃO IBÉRICA

 

José Fernando da Silva[1]

 

RESUMO

Por meio de pesquisa de registros históricos e evolução da aritmética no Ocidente, demonstra-se neste artigo que os numerais romanos passaram para as línguas portuguesa e espanhola conservando praticamente todas as suas características latinas, sem influências do romanço ou outros idiomas estranhos ao latim clássico. Nesse processo, houve apenas a supressão do gênero neutro e a eliminação das declinações, permanecendo o acusativo como caso lexogênico dessas duas línguas neolatinas. Verificou-se também que, após a romanização da Península Ibérica, já na Idade Média, a notação numérica e os algoritmos das operações aritméticas sofreram transformações radicais com a introdução dos algarismos indo-arábicos na Europa, entretanto os numerais romanos permaneceram quase intactos no Português e Espanhol

Palavras-chave: Filologia. Linguística. Matemática. Numerais. Latim.

INTRODUÇÃO

Os números e os numerais, os quais compõe e descrevem os algoritmos das operações aritméticas e das matemáticas de forma geral, estão presentes nas línguas modernas e são condição sine qua non para o desenvolvimento de quaisquer civilizações. Este artigo teórico tem por objetivo geral a investigação da transição do latim para as línguas portuguesa e espanhola. O instrumento para tal é o estudo dos numerais, isto é, a classe de palavras que exprimem número, ordem numérica, múltiplo ou fração. (CEGALLA, 2007). Assim sendo, a partir do desenvolvimento deste trabalho, busca-se elucidar o processo que deu nomes aos numerais em português e espanhol e se foi necessário se buscar palavras estranhas ao latim, de outros idiomas, para compor a nomenclatura desta classe gramatical. O resultado certamente dará subsídios para futuros trabalhos acadêmicos, principalmente nas áreas de matemática e ciências em que ela se aplica, além de elucidar fatos históricos e contribuir para o estudo da linguística.   

Como método, aqui não se procurou as nuances orais do latim, mas sim os remotos registros feitos por meio da sua morfologia e escrita, os quais são concretos e por isso, pouco afetos a conjecturas e suficientes para explicarem línguas derivadas, hoje em uso. Este cuidado com o método justificou-se no rigor científico, pois não haveria como construir uma teoria sólida sobre este assunto, considerando apenas vagas notícias de como se deu o processo do afloramento das línguas neolatinas.

Há de se lembrar que os aparelhos de gravação de sons e reprodução da voz humana só aparecem em 1877, com o anúncio da invenção do fonógrafo, atribuída a Thomas Edison. (DE LAUTOUR, 2015). Isso mesmo, a humanidade precisou esperar milênios para ter sua oralidade registrada e guardada para posteriores estudos. Inclusive o registro de línguas extintas recentes, sem um sistema de escrita. Ainda no século passado, algumas dessas línguas “perdidas” foram salvas e mantidas em gravações magnéticas ou digitais, nas quais se utilizam tecnologias advindas da eletrônica. Gravadas, elas são depositadas em instituições de pesquisa, ou modernamente, via internet, em sítios especializados, em que se destaca o Wikitongues

Longe de problemas semelhantes aos citados, para efeitos da delimitação do tema e para que se eliminem quaisquer dúvidas, buscou-se registros gramaticais efetuados a partir de fontes primárias, obras de estudos linguísticos e dicionários. Dessa maneira, optou-se ainda pelo estudo de períodos históricos específicos e marcantes na construção desses dois idiomas modernos, que têm como berço a Península Ibérica.

Para corroborar essas derivações linguísticas, do latim para o português e do latim para o espanhol, lançou-se mão de comparações entre palavras comuns e, notadamente, do sistema de numeração adotado em remotas épocas, com seus numerais, tão necessário ao comércio, à engenharia, à arquitetura, às navegações, ao desenvolvimento das ciências e tão presente no cotidiano das pessoas. Em suma, o escopo específico foi analisar a passagem do sistema numeral (ordinal e cardinal) e numérico romano para as línguas portuguesa e espanhola, registrando suas contribuições para esses idiomas. Investigou-se assim, se era necessário, ao português e ou ao espanhol, o auxílio de outras línguas para ampliar os próprios sistemas de números e numerais, além daqueles já presentes no latim.  

 

DESENVOLVIMENTO

De acordo com Birket-Smith (1962, p. 368), “A mais antiga escrita autêntica do mundo foi encontrada na Mesopotâmia em tabuinhas de barro do período chamado de Uruk (quarto milenário aC). Compreende 1.500 caracteres”. Todavia, destaca o filólogo dinamarquês que de todos os sistemas de escrita da Antiguidade o de maior significado é sistema fenício, sendo os vestígios mais antigos encontrados datados do século XIII aC.

A priori, considerou-se aqui somente esse período pós-escrita, quando se observa que a arte de contar e de se computar o contado se desenvolveu de várias formas, as quais serão expostas em seus contextos a posteriori. Assim sendo e admitindo-se um necessário salto na linha do tempo, sabe-se que por volta do sexto século aC, floresceu na Península Itálica, na região denominada de Lácio, a Civilização Romana. Este povo, o romano, que tinha por língua o latim, essencialmente prático, desenvolveu um sistema de contagem e notação numérica baseado no exercício de contar animais, sobretudo ovelhas, abandonando o que era usado nos tempos homéricos (séc. IX-VIII aC).

À maneira grega, relata Ifrah (2011), os romanos também passaram a usar letras do alfabeto para representar os números: 1, I; 5, V; 50, L; 100, C; 500, D; 1000, M. Esse sistema tinha boa utilidade para a ordenação dos numerais, entretanto se demonstrava praticamente inútil para as operações aritméticas. Segundo Ifrah (2011, p. 186), “Assim, um povo que atingiu em poucos séculos um elevado nível técnico conservou, curiosamente, durante toda a sua existência um sistema inutilmente complicado, não operatório”.

Ifrah (2011) relata que essa forma de notação numérica sobreviveu à decadência e queda do Império Romano e avançou pela Idade Média, quando foi substituído, na Europa, pelos algarismos indo-arábicos, que possibilitaram a realização de cálculo num sistema também decimal. É importante frisar a presença dos árabes na Península Ibérica por quase setecentos anos (711 dC – 1492 dC).

Ifrah (2011) comenta o duro caminho enfrentado pela nova forma de cálculo com os recentes caracteres, chamada de algoritmo. “Foi preciso esperar durante séculos até que o triunfo do ‘algoritmo’, como era então denominado o cálculo escrito, fosse finalmente total e definitivo”. (IFRAH, 2011, p. 304). Vencida essa batalha, inclusive enfrentando-se a resistência Igreja Católica durante o período da Inquisição, que via algo de “mágico” no novo método de cálculo, chegou-se aos nossos dias com a notação indo-arábica para os algarismos e a denominação romana para designá-los, os numerais. 

Na realidade, por motivos práticos, apenas trocamos uma notação por outra, mas a ideia fundamental de contar e operar com quantidades de um conjunto ainda se faz a mesma dos pastores que viveram na região do Lácio há quase três mil anos e com uma grande novidade que revolucionou a matemática ocidental, que foi a representação do nada, ou o ausente, por meio do zero. Dessa maneira, não se levando em conta as linguagens maternas, hoje, em qualquer parte do mundo, a linguagem matemática está unificada, mesmo que se ignore o árduo trabalho para se chegar ao que pode ser considerado tão simples, a feliz junção dos numerais latinos e o conjunto dos números Naturais indo-arábicos, N = {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9...}.

Furlan (2006), citando fontes históricas, entre elas a Breviarium historiae romanae ab urb condita de Flavius Eutropius (V dC), localiza a presença romana e consequentemente o latim, na Península Ibérica, a partir da segunda guerra púnica no ano de 218 aC e ressalta que aquela região era de interesse dos romanos por razões comerciais, econômicas e estratégias. Este processo de conquista se prolonga de 193 ao ano de 19 aC. Segundo Furlan (2006), a partir do ano 19 aC, a romanização da Península foi geral em todos os aspectos culturais, sobremodo no Sul e com grandes dificuldades ao Norte, onde não se conseguiu submeter, por exemplo, os bascos, aos pés dos Pirineus ocidentais, que ainda em nossos dias são falantes de língua não indo-europeia, o basco ou o vasconço.

Com a dominação romana, de acordo com Plinius (77 - 78 dC), primeiramente as terras da Península (Hispania terrarum) recebeu a denominação de Hispânia Ulterior, dividida longitudinalmente em duas províncias, a Béltica e a Lusitânia. Divisão esta que sugere, desde o começo da romanização, a existência de pelo menos dois principais povos ocupando aquele território, os quais dariam origem aos modernos estados da Espanha e Portugal, além da Galícia, hoje considerada comunidade autônoma da Espanha.

Os fatores da rápida romanização dessas populações nativas são enumerados por Furlan (2006): parentesco linguístico entre o celta e o latim; a ocupação do solo pelos soldados egressos do Exército Romano; o sistema viário e rotas marítimas que facilitaram o comércio e outros intercâmbios com Roma; e o direito à cidadania aos súditos do Império, concedido pelo imperador Caracalla (governou entre 211 e 217 dC). Não menos importante, em especial depois da queda do Império Romano do Ocidente, em 476 dC, está a difusão do latim vulgar nas pregações da Igreja Católica no período que seguiu, ou seja, ultrapassando a Idade Média.

Fernández (2015) mostra que, por volta do ano 1000 dC, a Península Ibérica encontrava-se praticamente romanizada, nos territórios hoje ocupados pela Galícia, Portugal e Espanha. Fora deste fenômeno linguístico e cultural, somente uma pequena região ao Norte, já citada, habitada pelos bascos.

Paralelos à romanização, de acordo com Furlan (2006), pode-se identificar dois períodos da derivação do latim para as línguas neolatinas da Península. O primeiro período vai de 200 aC até 476 dC, em que os falares regionais se aproximam dos idiomas românicos modernos e o segundo, se estendendo do século V, quando esses falares já assumem a forma de romances ou romanços até o século IX, quando surgem os primeiros documentos cartoriais e régios misturando o latim, dito bárbaro, com as novas línguas faladas pelos povos que habitavam a Península.  

Fernández (2015) informa que apesar de algumas incertezas, a língua castelhana, começou a ser registrada por escrito após as Reformas Carolíngias, principalmente nos conventos e mosteiros. Some-se a isso, o trabalho na consolidação do castelhano dos reis de Castela e Leão. Neste ponto se destaca o rei Fernando III, o santo (1217 - 1252), o qual tomou a decisão de ordenar à Chancelaria Real que começasse a emitir documentos em castelhano, em detrimento do latim e do leonês.  

Por outro lado, Furlan (2006) revela os primeiros documentos redigidos em português: A Notícia do Torto (1214 - 1216), datado de 1214 e O Testamento de Dom Afonso II (1211 - 1221), rei de Portugal. Ou seja, as duas nascentes línguas começam a ser escritas oficialmente quase que no mesmo período, durante os primeiros anos do século XIII. 

A Europa foi um cadinho efervescente nos aspectos cultural e econômico desde o início da romanização. De acordo com Beard (2020), a integração cultural que envolveu todo o Império, com grande movimento de pessoas e bens, teve natural reflexo na vida econômica. Era um mundo que, numa escala nunca vista, gerava fortunas, pois Roma dependia de um suprimento básico de víveres cultivados nas margens do Império.

Neste cenário, Portugal e Espanha, por suas posições estratégicas, ligando o Mediterrâneo ao Atlântico, avivaram a natural vocação mercantilista. Franco Júnior e Chacon (1986) argumentam que essa tradição mercantilista dos ibéricos, ganhará uma expansão na Idade Média e para isso contribuíram a posição geográfica, a precoce centralização política portuguesa e os progressos náuticos. Ora, se se adota por séculos a economia mercantil, obviamente há de dar ênfase ao processo de troca, venda e compra de mercadorias. Para que esse processo se dê a contento e em escala, há de se ter sistemas de contagem, classificação, ordenação, medidas e contábil firmados em números precisos.

Nos períodos de transições linguísticas, do latim ao romanço até se chegar ao português e ao espanhol, foi de uso da Península o sistema numérico romano, que sofreria modificações em seus algarismos, mais tarde substituídos pelos indo-arábicos, entre a Baixa e a alta Idade Média. Dessa maneira, ao se adotar a escrita das duas línguas neolatinas em tela, mister se faz verificar como foram tratados os números, não somente na grafia dos algarismos, mas, principalmente, na grafia de seus respectivos nomes e variações.

Mas antes de examinarmos os numerais propriamente ditos, necessário é se considerar como as palavras latinas foram assimiladas nas novas línguas predominantes na região ibérica. Aqui aparece um consenso entre os gramáticos e filólogos, ao constatarem que as palavras de origem latina, tanto no espanhol quanto no português, que são a imensa maioria, são pinçadas do modo acusativo das declinações. 

Em latim, as palavras são reunidas em declinações, em número de cinco. Os romanos declinavam os nomes, os adjetivos e os pronomes. São seis os casos em que uma palavra pode aparecer numa frase, período ou oração, então declinar uma palavra significa enunciar suas seis formas possíveis no singular e seis formas no plural, no masculino e feminino, além do neutro, se existir.

Observe-se a declinação da palavra feminina rosa, ae, como exemplo, que em português e espanhol mantém a forma escrita original latina:

Quadro 1 - declinação de rosa, ae (primeira declinação)

CASO

FUNÇÃO

SINGULAR

PORTUGUÊS

ESPAÑOL

PLURAL

PORTUGUÊS

Nominativo

Sujeito

rosa

a rosa

la rosa

rosae

as rosas

las rosas

Vocativo

Chamado

rosa

ó rosa,

rosa,

rosae

ó rosas,

rosas,

Genitivo

adjunto restritivo

rosae

da rosa

de la rosa

rosarum

das rosas

de las rosas

Dativo

objeto indireto

rosae

para a rosa

à rosa

a la rosa

rosis

para as rosas

às rosas

a las rosas

Ablativo

adjunto circunstancial

rosa

com a rosa

pela rosa

con la rosa

por la rosa

rosis

com as rosas

pelas rosas

con las rosas

por las rosas

Acusativo

objeto direto

rosam

a rosa

la rosa

rosas

as rosas

las rosas

Fonte: elaborado pelo autor.

 

“O acusativo, que é para o português o caso lexicogênico, isto é, o caso de que provieram os nossos vocábulos, termina geralmente em m, no singular das cinco declinações. (...) O acusativo plural das cinco declinações termina em s (ALMEIDA, 2000, p. 89). No espanhol, o fenômeno se repete, com o acusativo também atuando como caso da gênese da língua.

Nas gramáticas latinas constam os numerais: cardinais, ordinais, multiplicativos e os distributivos. A ênfase neste estudo recai sobre os dois primeiros, que são suficientes para a demonstração desejada. De antemão, é bom que se frise, que as conclusões aqui expostas não estariam prejudicadas pela ausência de uma análise mais detalhada dos multiplicativos e distributivos, muito pelo contrário.

O cardinal indica quantidade e o ordinal, ordem. (ALMEIDA, 1972). Isto posto, carece-se de se estudar como se comportam os algarismos e seus nomes nas novas línguas ibéricas. Nos quadros de 2 a 4, são apresentados em latim os paradigmas das declinações, com os respectivos casos lexogênicos para as línguas portuguesa e espanhola.

Quadro 2 - Declinação de unus, a, um

     Caso

Masculino

Feminino

Neutro

Português

Español

Nominativo

unus

una

unum

Genitivo

unius

unius

unius

Dativo

uni

uni

uni

Ablativo

uno

una

uno

Acusativo

unum

unam

unum

um, uma

uno, una

Fonte: elaborado pelo autor.

 

Quadro 3 - Declinação de duo, duae, duo

     Caso

Masculino

Feminino

Neutro

Português

Español

Nominativo

duo

duae

duo

Vocativo

duo

duae

duo

Genitivo

duorum

duarum

Duorum

Dativo

duobus

duabus

Duobus

Ablativo

duobus

duabus

Duobus

Acusativo

duos

duas

duo

dois, duas

dos

Fonte: elaborado pelo autor.

 

Quadro 4 - Declinação de tres, tria

Caso

Masculino e Feminino

Neutro

Português

Español

Nominativo

tres

tria

Vocativo

tres

tria

Genitivo

trium

trium

Dativo

tribos

tribos

Ablativo

tribos

tribos

Acusativo

tres

tria

três

tres

 

Quadro 5 - Numerais Cardinais até o vinte 

Romano

Indo-arábico

Latim

Português

Español

I

1

unus, una, unum

um, uma

uno, una

II

2

duo, duae, duo

dois, duas

dos

III

3

tres, tria

três

tres

IV

4

quattuor

quatro

cuatro

V

5

quinque

cinco

cinco

VI

6

sex

seis

seis

VII

7

septem

sete

siete

VIII

8

octo

oito

ocho

IX

9

novem

nove

nueve

X

10

decem

dez

diez

XI

11

undecim

onze

once

XII

12

duodecim

doze

doce

XIII

13

tredecim

treze

trece

XIV

14

quattuordecim

quatorze

catorce

XV

15

quindecim

quinze

quince

XVI

16

sedecim - decem et sex

dezesseis

dieciséis

XVII

17

septemdecim - decem et septem

dezessete

diecisiete

XVIII

18

octodecim - decem et octo

dezoito

dieciocho

XIX

19

novemdecim - decem et novem

dezenove

diecinueve

XX

20

viginti

vinte

veinte

Fonte: elaborado pelo autor.

Na observação desses quadros, ressalta-se algumas particularidades: a partir do latim, é evidente a origem comum dos numerais em português e espanhol; nos radicais não aparecem traços de outras línguas. Além disso, as formas sedecim, septendecim, octodecim e novemdecim são equivalentes às formas: decem et sex, decem et septem, decem et octo, decem et novem, assimiladas em português como dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove e em espanhol: dieciséis, diecisiete, dieciocho, diecinueve

Os romanos também admitiam e usavam outras maneiras de grafar os dois numerais finais de dezena, utilizando uma “conta de chegar”, assim: 18, dois (tirados) de vinte, duodeviginti; 19, um (tirado) de vinte, undeviginti; 28, dois (tirados) de trinta, duodetriginta; 29, um (tirado) de trinta, undetriginta. (ALMEIDA, 2000). Essa forma de contar não chegou às línguas portuguesa e espanhola. A contagem do 20 em diante, tanto em latim quanto em português continua sem sobressaltos ou sustos com palavras derivadas de outras línguas.

Almeida (1973), conceitua ordinal como o numeral que indica sequência e ou posição. Ao se colimar as respectivas traduções fica clara a assimilação quase que completa dos ordinais pelas línguas portuguesa e espanhola hodiernas.

 

Quadro 6 - Numerais Ordinais até o vigésimo

Ordinal

Latim

Português

Español

primus, a, um

primeiro(a), primo(a), primário(a)

primero(a), primer, primo(a), primario(a)

secundus, a, um

segundo,

secundário

 

segundo(a)

tertius, a, um

terceiro(a), terciário(a), tercionário, terçã

tercero(a), terciario(a)

quartus, a, um

quarto(a), quartenário(a), quartã

cuarto(a), cuaternario(a)

quintus, a, um

quinto(a)

quinto(a)

sextus, a, um

sexto(a)

sexto(a)

Ordinal

Latim

Português

Español

septimus, a, um

sétimo(a)

séptimo(a)

octavus, a, um

oitavo(a)

octavo(a)

nonus, a, um

nono(a), noveno(a)

nono(a), noveno(a)

10º

decimus, a, um

décimo(a), decimal, dezeno(a)

décimo(a)

11º

undecimus, a, um

décimo primeiro(a), undécimo(a)

undécimo(a)

 

12º

duodecimus, a, um

décimo segundo(a), duodécimo(a)

duodécimo(a)

13º

tertius decimus

décimo(a) terceiro(a)

decimotercero(a)

14º

quartus decimus

décimo(a) quarto(a)

decimocuarto(a)

15º

quintus decimus

décimo quinto(a)

decimoquinto(a)

16º

sextus decimus

décimo sexto(a)

decimosexto(a)

17º

septimus decimus

décimo(a) sétimo(a)

Decimoséptimo

18º

octavus decimus

décimo(a) oitavo(a)

decimoctavo(a)

19º

nonus decimus

décimo(a) nono(a)

decimonoveno(a)

20º

vicesimus

vigésimo(a)

vigésimo(a)

Fonte: elaborado pelo autor.

 

CONCLUSÃO

Quod est demonstrandum: ao se usar apenas a escrita da língua de Iulius Caesar et Cicero para investigar a gênese comum do português e espanhol, em momento algum se necessitou da construção de hipóteses baseadas em outros recursos linguísticos para justificar a passagem dos numerais de uma língua para outra; caso houvesse ainda alguma dúvida de que as línguas portuguesa e espanhola têm fortes alicerces no latim, bastaria apresentar os cardinais e ordinais, os quais encontram seus correspondentes bem pertos da forma original, nas duas línguas neolatinas examinadas.

Acrescente-se à resposta da questão que orientou este trabalho, isto é, qual o processo que deu nomes aos numerais em português e espanhol e se foi necessário se buscar palavras estranhas ao latim, de outros idiomas, para compor a nomenclatura desta classe gramatical, é possível afirmar que os numerais não sofreram influências de outros idiomas ao migrarem para as línguas portuguesa e espanhola e são incontestavelmente de origem latina. Isso se evidencia já na análise dos quadros comparativos, autoexplicativos por natureza. Nota-se ainda que os numerais vieram compor os novos léxicos até mesmo em suas formas originais, caso do numeral três por exemplo, o qual manteve-se tanto no português quanto no espanhol, embora tenha perdido forma similar feminina, que existia em latim. Esta passagem de uma língua para outra também se deu em nome da simplificação. Com a adoção dos artigos, inexistentes no latim, o português e o espanhol livraram-se do trabalho de ter que declinar as palavras para dar sentido a frases e orações. Ora o numeral três é apenas um exemplo da feliz apropriação dos numerais latinos como um verdadeiro sistema léxico voltados à arte de contar e enumerar.

Na análise dos quadros revela-se ainda a regra de permanência nas línguas neolatinas dos radicais dos numerais gerados no latim, nos ordinais e cardinais. A regra é válida para toda a classe dos numerais e evidencia-se nos ordinais, por exemplo, desde seu inicial ordenador, que é o vocábulo latino primus, a, um, que gerou várias palavras derivadas no português e espanhol sempre mantendo prim- como o radical: primeiro(a), primo(a), primário(a), no português; e primero(a), primer, primo(a), primario(a).

Essa regra não se esgota apenas nos primeiros numerais descritos nos quadros destacados anteriormente, ela vai mais além e alcança praticamente todo o sistema numérico. As variações ficam por conta da ordem das palavras que eram usadas em latim e como essa ordem foi adaptada para as línguas neolatinas, em estudo e que nada muda o entendimento moderno dos numerais. Exemplos:  nos ordinais, em que se usam “primeiro”, no português e primero no espanhol, no latim usava-se também na forma unus et,  assim, unus et quinquagesimus (51º); nos que se usam “segundo”, o latim usava alter, anteposto com et, alter et quinquagesimus ou sem et, quinquagesimus alter; escrevia-se nonagesimus nonus ou nonus et nonagesimus; do 101º ao 999º escrevia-se quase sempre com o maior precedendo o menor, com ou sem et, nonogentesimus (et) nonagesimus nonus; do 1001 em diante se escrevia-se o maior precedendo o menor, sempre sem et, millesimus nongentesimus quadragesimus tertius (1943º).

Há de se registrar que, quanto aos números houve sim uma mudança radical com a adoção dos algarismos indo-arábicos. Embora ainda persista na enumeração de capítulos e tomos de livros, ou em códigos legais, o sistema de letras do alfabeto, na forma de algarismos romanos, eles foram substituídos na prática em todas as áreas de conhecimento, sobremodo na matemática e outras ciências na quais ela é aplicada, porém com os nomes representados pelos numerais mantidos nos dois idiomas destacados.  

Nas adaptações verificadas do latim para as duas novas línguas nascidas na Península Ibérica, praticamente cem por cento dos radicais dos numerais latinos permanecem os mesmos, ocorrendo adaptações nas terminações em função do caso acusativo para uso como substantivos, ou nomes. Há de observar também que tanto no português quanto no espanhol as declinações foram suprimidas para os numerais, como de resto nas outras classes gramaticais. A forma neutra, utilizada para designar coisas, igualmente desapareceu, permanecendo numerais de serventia para os dois gêneros, ou definidos ora como masculino, ora como feminino.

Ab ovo, já na apresentação dos quadros numerais, o que não pode passar desapercebido é que a transição dos numerais romanos foi pacífica para os idiomas de Camões e Cervantes e não sofreu influências do romanço e muito menos do latim vulgar. Ou seja, os numerais usados hodiernamente nos idiomas estudados têm suas raízes formadas no latim clássico e no vigor de quase três mil anos de história do desenvolvimento da humanidade a partir da civilização romana.

Finalmente conclui-se que os resultados desta pesquisa lançam bases teóricas para futuros trabalhos acadêmicos, principalmente nas áreas de matemática e outras ciências em que essa disciplina se aplica. O que se obteve, veio elucidar fatos históricos e contribuir para o estudo da linguística, pois considera-se que ficou evidenciado que, em qualquer escola do Ensino Fundamental, na mais simples feira, ou nas mais sofisticadas universidades, os numerais em uso têm suas bases no latim tanto no português quanto no espanhol. Estudar as anciãs e eruditas raízes dos numerais romanos é, portanto, estudar a própria evolução das línguas neolatinas.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, Napoleão M. Gramática Latina. 30 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

ALMEIDA, Napoleão M. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 24 ed. São Paulo: 1973.

BEARD, Mary. SPQR, uma história da Roma antiga, 2 ed. São Paulo: 2020.

BIRKET-SMITH K. História da Cultura: origem e evolução. 2 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1962.

CEGALLA, Domingos P. Novíssima gramática da língua portuguesa. 46 ed. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2007.

DE LAUTOUR, R. Som, reprodução, misticismo: Thomas Edison e a mitologia do fonógrafo. Música em Contexto, [S. l.], v. 9, n. 1, p. 23–53, 2015. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/Musica/article/view/19583. Acesso em: 23 set. 2023

FERNÁNDEZ, Francisco M. La Maravillosa Historia del Español. 2015. Disponível em https://campus.fahce.unlp.edu.ar/pluginfile.php/247754/mod_page/content/3/Moreno%20F.%20La%20Maravillosa%20Historia%20Del%20Espanol.pdf. Acesso em: 23 set. 2023

FRANCO JÚNIOR, Hilário; CHACON, Paulo Pan. História econômica geral. São Paulo: Atlas, 1986.

FURLAN, O. A. Língua e literatura latina e sua derivação portuguesa. 1 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

IFRAH, Georges. Os números: história de uma grande invenção. 11 ed. São Paulo: Globo, 2011.

PLINIUS, Naturalis Historia, Liber III.6. (77 - 78 dC). Disponível em https://la.wikisource.org/wiki/Naturalis_Historia/Liber_III#III. Acesso em 23 set. 2023



[1] Cientista de Dados e Analytics (USP), especialista em Ensino da Língua Espanhola, especialista em Economia do Trabalho (UFPR), bacharel em Comunicação Social – Jornalismo (UFPR) e professor licenciado em Matemática, jsfernandojor@gmail.com

 

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